Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:


REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO


Esses sapatos é por mom d’ir à missa?

Lugar dos Dois Caminhos, 21 de Fevereiro
Na figura do bêbedo se esconde um dos grandes mistérios da aldeia. O bêbedo da aldeia não é tão pior do que os outros como estes pensam, porque há uma dor nos seus olhos. Mas também não é tão melhor como gosta de pensar, porque nunca usou essa dor para acrescentar alguma coisa ao mundo.
O bêbedo da aldeia foi motorista não sei do quê e agora faz uns biscates não sei onde. Quando era motorista, estava convencido de que o mundo não tinha aberto alas como devia à sua passagem. Agora que faz biscates, porque a empresa onde trabalhava entrou em redução de pessoal e o facto de conduzir com os copos não resultou em seu favor, acha que o mundo foi injusto ao roubar-lhe o emprego de motorista.
O mundo é a sua besta negra, a sua némesis, e talvez lhe venha daí, primeiramente, a condição de bêbedo da aldeia. Portanto, agora faz apenas os biscates que não pode deixar de fazer, e fá-los tão devagar quanto consegue, que ninguém há-de ficar a rir-se dele. A não ser, evidentemente, que o biscate lhe permita usar todo o seu talento e ninguém à volta possa ficar indiferente à dimensão deste, caso em que abrirá a excepção de trabalhar as horas contratadas com a diligência contratada também.
O bêbedo da aldeia não bebe para suportar a pressão, nem para superar um dilema, nem para esquecer um fracasso. O bêbedo da aldeia nunca sequer equacionou a possibilidade de se ter deixado fracassar. A sua vida não foi feita de dilemas, categoria que também não considera, e, se algum stress impede hoje sobre ele, veio do hábito de beber. Mas, mesmo assim, há aquela dor nos seus olhos.
Uma sombra. Uma espessura – uma dúvida a que ele próprio não sabe dar nome. E essa dúvida distingue-o do cidadão cumpridor que vive na casa ao lado da sua.
O bêbedo da aldeia começa a beber ainda cedo: meio-uísque para o café não lhe cair no estômago em fraqueza e, conferido o relógio, mais meio-uísque porque, assim como assim, o patrão chega sempre cinco ou dez minutos atrasado de manhã. O bêbedo também beberia aguardente, ou brandi de má qualidade, ou vinho, e aliás já os bebeu. Mas desde que se divorciou que bebe uísque, porque agora não é um bêbedo qualquer: é o bêbedo da aldeia.
Quando era casado, o bêbedo da aldeia não bebia com o mesmo à-vontade. A mulher condicionava-lhe o orçamento, os vizinhos censuravam-no com o olhar e ele próprio via a pequena choramingando no berço e dava por si a pensar que talvez fosse boa ideia ao menos não se deixar endividar, porque o mundo podia não ser tão injusto para a garota como fora para ele, e melhor seria se ela estivesse em condições de corresponder.
Mas, se essa fragilidade o caracterizou, foi apenas como prova da bondade primordial das suas intenções. Tendo de ser honesto, o bêbedo da aldeia proclamaria que isso de estudar há muito tempo deixou de levar quem quer que seja aonde quer que seja. E, mesmo quando pareceu levar, não foi longe. Toda a vida o bêbedo conheceu doutores e engenheiros que eram uns desgraçados. Nunca sentiu que um só fosse melhor do que ele, e também não será o caso da filha.
Isto eram coisas em que o bêbedo da aldeia pensava antes de se divorciar. Estava tolo. Agora já ninguém o chateia, e de qualquer maneira a miúda anda toda contente lá com o padrasto, aquele corno manso, que bem se merecem um ao outro.
O bêbedo da aldeia sabe de cor um monte de provérbios, que lhe dão imenso jeito em colóquios futebolísticos ou de natureza moralista, e todas as manhãs, durante os três meio-uísques que bebe antes de ir para o trabalho – raramente passa disso –, se deixa um bocado a  ver as notícias dos acidentes na televisão. Desde que abandonou o volante, nunca mais se conduziu em condições neste país.
O bêbedo adora uma teima e ganha-as todas. O bêbedo joga na equipa de chinquilho da Casa do Povo, que ofereceu à aldeia o terceiro lugar ex aequo nos jogos municipais de há três anos, e não só esta ainda não foi capaz de homenagear os seus heróis, como continua a não aparecer ninguém para ver os jogos de chinquilho,  aos sábados, no ringue da Casa do Povo.
O bêbedo atravessa a aldeia cambaleando, todos os dias à noitinha, e uma vez por outra cambaleia ao lado dele aquela rapariga do bairro dos pescadores de quem se diz que anda na droga, e que sobrevive disso de cambalear ao lado dos bêbedos das aldeias em volta quando, à noitinha, estes tornam a casa.
O bêbedo da aldeia é às vezes visto a sair o portão de um vizinho com um tacho de comida na mão, no que não deixa de ser um pouco pungente. O bêbedo da aldeia vê regressar do trabalho um vizinho que vem cansado, se levanta demasiado depressa do carro e se agarra de repente às pernas, com uma baixa de tensão, e, quando lhe pergunta:
– Então, Tozé, isso vai?
Pergunta-o com uma preocupação, e um interesse, e até uma amizade de que não o julgávamos capaz, porque a verdade é que o vemos há tantos anos como o bêbedo da aldeia, apenas o bêbedo da aldeia, que já nem equacionamos a possibilidade de nos termos deixado fracassar com ele.
Falo de arquétipos e, afinal, são tão falíveis: o bêbedo de que falo existe também nas cidades, nos bairros mais chiques das cidades, nos bairros mais chiques das cidades mais chiques. O que nunca falha é que aquilo que nos distinguiu dele foi tão pouco que agora nem sabemos o que foi.


* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”

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