Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

REGRESSO A CASA
Um diário açoriano
de JOEL NETO

Tou cego pra te dar

Lugar dos Dois Caminhos, 1 de Fevereiro
No domingo fui buscar estacas de hortênsias ao Nogueira. Pôs-se logo a podar naquelas que tem defronte do bar, de caule grosso, que dão as flores maiores e mais cheias. O Carreiro estava a ajudá-lo com umas folhas de castanheiro que era preciso varrer e, ao ver-nos de volta das hortências, veio oferecer-me também das dele, que diz serem sempre cor-de-rosa e lindas, independentemente do pH do solo.
Voltei de lá com a mala do carro tão carregada de estacas que decidi serem suficientes não só para concluir a parede vegetal com que preferi delimitar o pomar a Oeste, mas inclusive para embelezar o muro do caminho – a parte que me pertence e até a parte que pertence aos meus primos.
É um tipo extraordinário, o Nogueira. Trabalhou muitos anos para os americanos e, entretanto, meteu todas as energias na Quinta do Galo, que se foi tornando sucessivamente quinta agrícola, unidade de turismo rural, quinta pedagógica, salão de festas. De início toda a gente pensava que andava a brincar aos empresários. Hoje, já ninguém estranha que metade dos automóveis que passam aí fora na estrada – e quatro quintos dos que passam aos fins-de-semana – estão a caminho da Quinta do Galo.
Vão a um casamento. Vão levar as crianças a ver a bicharada. Vão pedir alguma coisa, como eu fui pedir plantios de hortênsias. Todos os dias alguém vai à Quinta do Galo pedir alguma coisa: um plantio, um patrocínio, uma borla. “É sinal de que eu tenho e posso dar”, diz o Nogueira, naquele seu jeito despachado.
Podia ser um lisboeta convertido, desses que enchem a Serra e o Alentejo – sobretudo o Alentejo – de unidades de turismo cheias de estilo, moralismo e preços exorbitantes. Simplesmente, não é a fuga nem a autovalidação que o movem: é o amor. O Nogueira é daqui. Ama esta terra e quis fazer dela mais do que ela era.
Quem também amava esta terra, embora na verdade não fosse daqui, era o meu avô. O Nogueira fala-me sempre dele – do cabo de aço em que o meu avô fazia descer a lenha da mata, do macaco que o meu tio trouxe da Guiné e o meu avô albergou –, o que acaba por me parecer natural. Precisamente: agora ando a pedir plantios a um para embelezar a terra que foi do outro.
Que será sempre.
Hoje estive a ver o Rúben e aquele a quem chama primo – ou Primo – concluírem o corte da infestante estuporada que grassou mata acima. Nem quis saber o nome, de tal modo a deploro. Lembro-me dela desde criança, e o Chico já tinha cortado um bocado há dois anos. Mas agora tratava-se de trabalho industrial: umas boas centenas de metros quadrados de corte. E, concluída a tarefa, vi pela primeira vez a minha araucária ao contrário, crescendo contra o casario, e não contra as copas das acácias.
Que me lembre – e sou atento a essas coisas – ninguém nos últimos 40 anos teve acesso àquela perspectiva: a freguesia apreciada dos socalcos da minha encosta. Estou mesmo em crer que desde que a porcaria da infestante pegou, há mais de 60 anos, nunca mais alguém pôde ver o casario dos Dois Caminhos de cima para baixo. Vi-o eu, hoje, e deixei-me comover.
Todos os dias andam homens a trabalhar aqui na terra, agora. Vendi a madeira da mata a uns, cedi os cerrados para exploração a outros, continuo a trabalhar no meu próprio pomar eu – eu, o Chico e o Fábio, que às vezes também vem ajudar. Todos os dias vejo a paisagem mudar, recuperar perspectivas, descobrir um velho muro de pedra de que eu já não me lembrava, revelar uma fraga de que não me lembrava eu nem se lembrava ninguém.
Aos domingos estou sozinho. Ligo a rádio na Antena 1 Açores e fico ali, com o ancinho e o alvião, a ouvir o relato dos jogos regionais. Faço canteiros à volta das árvores. Protejo os caules com tubos de canalização cortados à medida. Componho os canteiros com o mulching a que o Rúben reduziu as sobras com o corta-mato. Planto flores, legumes e aromáticas, e no outro dia até plantei um braçado de alhos-bravos que a Andreia veio cá oferecer, e que se dão muito bem à sombra de um castanheiro, como o meu avô gostava.
O meu avô havia de se se entender com o pai da Andreia. Se tivesse ido comigo aos Biscoitos comprar as árvores, também tinha acabado por lhe comprar os enxertos todos a ele. É tão paciente, o pai da Andreia. Responde a qualquer pergunta. “Não me leve a mal”, justificava-me eu. “Não percebo nada disto.” E ele: “Há-de perceber de outras coisas de que eu não percebo. Ligue a qualquer hora do dia ou da noite.”
E eu deixo-me comover outa vez. Comove-me, tudo isto. Comove-me voltar a dar vida a esta terra. Comove-me pensar nos homens que viveram de facto dela – o meu avô, os jornaleiros que o ajudavam. É tão dura, esta terra. Tão pedregosa e tão húmida e tão pesada.
No ano passado, determinado a perceber quantas horas por noite dormia e quantas horas por dia mexia as pernas, trouxe da Califórnia um daqueles relógios que ainda não se viam muito por aqui e agora se vêm em todo o lado. Percebi desde então que, num dia normal ao computador, dou 7.000 passos e queimo 2.500 calorias. Já num dia em que vou ao ginásio, dou 12.000 e queimo 3.000 calorias. Pois, em cada dia que passo no meu pomar, dou 25.000 passos e queimo 4.000 calorias.
Até uma coisa tão parva como ter um relógio que mede a actividade física me faz comover-me com esta terra. Já não me passa.

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* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”
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