Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:


REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO



Esse cerrado tem pedra que é medonho


Lugar dos Dois Caminhos, 16 de Fevereiro
Quando me sinto a resvalar para o cinismo, vou pôr-me a conversar com o R. Ganhei esse hábito nos últimos tempos. O R. tem 24 anos e admira o seu pai.
Não é a única coisa que qualifica o R., isso de admirar o seu pai. O R. tem juízo, o que é cada vez menos frequente num rapaz de 24 anos. O R. acaba de se tornar pai pela primeira vez, o que já só é minimamente frequente, num rapaz de 24 anos, em lugares como este. O R. tem ética de trabalho, um colaborador que quando apanha dinheiro na carteira já não aparece para trabalhar, porque precisa de tirar uns dias para beber uns copos, e mesmo assim olha para ele com bonomia, porque:
– Coitado. Não tem mais ninguém.
O R. faz uns queijos maravilhosos, à moda do Pico – queijos frescos em ponto gigante, daqueles que se servem à fatia. Só aqueles queijos maravilhosos, que me vende a quatro euros, duram de sábado a terça-feira e de que até faríamos refeições se não guardássemos os fins-de-semana para um certo epicurismo, já seriam suficientes para qualificar o R. Não sei se haverá muitos neurocirurgiões a operar corpos calosos com mais sentido de responsabilidade do que aquele com que o R. faz os seus queijos à moda do Pico.
Mas, quando me vou pôr a falar com ele, receoso de que se me esteja a escorregar o pé para o cinismo outra vez, é para o ouvir falar do pai. E então ele diz:
– O meu pai é como o Chico. Sabe fazer de tudo um pouco.
O R. também admira o Chico, que conheceu nesta pequena quinta que pertenceu ao Ti José Guilherme. Às vezes põe-se a ver o Chico reerguer um velho muro de pedra-sobre-pedra e a elogiar. Também já sabe alguma coisa sobre muros de pedra-sobre-pedra, o R., porque quem anda na lavoura acaba por adquirir determinadas competências. Mas, se formos falar de quem verdadeiramente sabe fazer muros de pedra-sobre-pedra, em casa do R., é o pai do R.
– Sabe fazer de tudo um pouco, o meu pai – diz ele. – Até cozinhar. E, quando a minha mãe está atrasada com o serviço, com muita costura para fazer, é o meu pai que ajuda.
E eu deixo-me a imaginar o pai do R., com os seus dedos rudes de homem do mar e da terra, um dedal numa mão, um pequeno bastidor na outra, uns óculos de ver ao perto no rosto – a ajudar a mulher a costurar durante uma tarde de sábado.
O pai do R. foi agricultor, operário de construção civil, mecânico, silvicultor, marinheiro. Hoje é maquinista de navios. Viveu no Pico, viveu no continente, vive na Terceira e, de vez em quando, vai buscar aos mares do Norte um barco avariado, ou comprado, ou simplesmente em apuros.
Um homem assim tem sempre mais facilidade em ganhar a admiração do seu filho, sobretudo se nasce com aquele semblante sério e ao mesmo tempo bondoso com que o pai do R. nasceu. Mas o R. não admira o pai apenas porque não pode evitar admirá-lo. Admira-o porque quer admirá-lo, e esse é que é o mistério, porque se trata de um rapaz sério, com pouca formação e o facto de ser um rapaz sério e humilde por mais impressionante cartão de visita.
– Cá o meu pai sempre me disse: não podemos ser todos doutores – diz o R. – Se não fossem os padeiros, os camponeses e os pescadores, o que é que haveria de ser dos doutores? Até fome passavam.
E fica ali a falar de todas as coisas que aprendeu com o pai, que continua a aprender com o pai, e de como isso o vem formando como um homem que agora é pai também e não tarda terá de se preocupar em ser igual exemplo de tenacidade para a sua pequena Francisca, que isto o tempo às vezes passa mais rápido do que aquilo que a gente se parece.
No outro dia, fui fumar um cigarro com o R., enquanto ele trepava e descia a ribanceira que temos aí atrás, a arrancar raízes, e pus-me a pensar na sua Francisca. Imagino-a aos oito anos, uma pequena maria-rapaz, de botas-de-cano e boné virado ao contrário, brincando com a sua bezerra preferida e revirando os olhos sempre que o avô lhe diz, na brincadeira, que aquela bezerra vai dar uma bela alcatra. Imagino-a aos dezoito, o primeiro rebento do clã a ir para estudar para Lisboa, e os pais e os avós tão orgulhosos dela como surpreendidos pela mulher em que se está a tornar e receosos de que Lisboa estrague tudo.
Tenho a certeza de que o R. e o pai e a mãe do R. e a mulher do R., embora só a tenha visto uma vez, hão-de saber ensinar a contrariedade à Francisca. Ensine uma família a contrariedade às suas crianças e tenho a impressão de que a maior parte do resto elas saberão fazer sozinhas. E o pai do R. nunca deixaria que não se ensinasse a contrariedade à neta. O homem em que o R. se tornou mostra bem o cuidado que o pai e a mãe do R. sempre tiveram com isso.
Tem razões para admirar o seu pai, o R. É um homem bom e formador. Um homem forte. Quem o veja cirandar entre as bancas da Feira do Gado, aos domingos de manhã, percebe o respeito que granjeia entre os outros homens de trabalho como ele. Também isso formou o R.
Escrevi já não me lembro onde que a idade adulta começa no momento em que um homem volta a admirar o seu pai. E a isso de um homem nunca ter sequer parado de admirá-lo, chamar-se-á o quê? Um prolongamento da infância? Talvez, mas nesse caso há de ser o mais benigno deles.



* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias

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