Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

REGRESSO A CASA
Um diário açoriano
de JOEL NETO

O gajo bebe que é feio

Lugar dos Dois Caminhos, 9 de Fevereiro
E agora lembrei-me do dicionário de sinónimos do meu avô. Lembrei-me, não: olhei para ele. Está aqui em cima da minha mesa de trabalho, aberto sobre um suporte de livros de receitas. Há-de ajudar-me neste texto também, apesar de eu ainda não saber que solução precisarei de ir lá buscar. Ajuda-me todos os dias.
Anda em cima da minha mesa há mais de vinte anos, este dicionário de sinónimos. Viveu comigo em dez casas, acompanhou-me para sete redacções, socorreu-me numa dúzia de livros, melhorou-me o léxico em contos para dezenas  de antologias e textos de todos os tipos para tantas publicações que eu nem conseguiria contar.
Há cinco anos, voltou ao lugar de onde partira: a casa do meu avô. Continua a ajudar-me.
Tenho outros dicionários de sinónimos. Só da Porto Editora, e entre mim e a Catarina, temos aí por casa três ou quatro versões. Quando comprei o Houaiss, afinal menos necessário do que imaginava, juntei-lhe o dicionário de sinónimos da colecção – de sinónimos e de antónimos, funcionalidade que uso menos, mas que quando uso nenhum outro dicionário faria melhor.
Não importa: o velho dicionário de sinónimos do meu avô continua o meu preferido. Tem palavras que já não há em mais nenhum, e não é só por isso. Tem um cheiro antigo, quase queirosiano. Eu ando sempre em luta com o vocabulário, porque já nasci numa época em que o vocabulário se afunilava. E, entretanto, a revolução digital acabou com o resto.
Tenho a impressão de que dois terços de nós já não chegam a usar duas mil palavras. Diferentes, porque repetições não deve dar para contar.
O dicionário de sinónimos do meu avô foi editado pela Tertúlia Edípica-Sociedade Literária Charadista e vem revisto segundo a ortografia do Acordo Luso-Brasileiro de 1945. É lindo, com uma capa carmesim, acetinada, e títulos a dourado. Suponho que o meu avô o tenha comprado nos anos 50,  altura em que compunha charadas para o Diário Insular com o pseudónimo de D. Josito. Infelizmente, não cheguei a perguntar-lho.
A primeira vez que levei o meu dicionário de sinónimos para uma redacção, trabalhava no Record. Tinha 21 anos e, quando a restante malta recém-contratada chegou ao jornal, sacou das malas a tiracolo e tirou lá de dentro os telemóveis, eu saquei da minha e tirei o dicionário de sinónimos. Quem estava a editar o jornal nesse dia era o Santos Costa, que costumava falar ao telefone com os pés em cima da mesa, e que revirou logo os olhos:
– Lá me saiu mais um príncipe da escrita...
 “Príncipe da escrita” era como alguns jornalistas da velha guarda chamavam, não aos tipos que sabiam escrever, mas aos que tinham a mania que sabiam escrever. Ali ninguém sabia escrever: quando muito, tinha a mania. O jornalismo desportivo como a velha guarda o entendia era feito de meia-lua, grande círculo e pontapé de bicicleta. Fiquei cinco anos no jornal e até ocupei cargos de responsabilidade. Quando me vim embora, um amigo de outra actividade perguntou-me o que era a intermediária e eu cheguei à conclusão de que não sabia.
Depois fui para os tablóides – continuaram a gozar-me. Finalmente fui para os jornais sérios – gozavam-me menos, mas gozavam. Neste momento tenho o dicionário em cima da mesa e suspeito que até o Melville, deitado na sua cama por debaixo dela, me goza em silêncio.
E, no entanto, daqui a pouco vou acabar este texto (já me restam pouco mais de 1500 caracteres) e revê-lo palavra a palavra, a conferir se todas elas têm o exacto significado que quero. Quando não tiverem, puxarei pela cabeça, à procura de outras. No fim, irei ao dicionário de sinónimos – e, como neste momento já passa da meia-noite e eu estou a trabalhar desde as oito da manhã, o mais provável é que lá vá várias vezes.
Nós pensamos em palavras, o que já se tornou banal dizer. Mas vale a pena repetir que, quanto menos palavras dominamos, menos pensamos. De cada vez que acrescentamos uma palavra ao nosso léxico, pelo contrário, abrem-se-nos novas possibilidades. E, quando encontramos no dicionário de sinónimos uma palavra que não nos ocorreu, de que andávamos esquecidos ou que nem sequer conhecíamos, podemos até vir a pensar uma coisa muito diferente daquela que pensávamos, às vezes até oposta e, em geral, melhor.
Mário de Carvalho, o meu herói contemporâneo nos domínios do léxico (e não só), usa um dicionário de sinónimos. Saramago, tenho quase a certeza, usava um dicionário de sinónimos. Eça e Camilo, provavelmente, não usavam um dicionário de sinónimos, mas por outro lado no tempo deles “príncipe da escrita” não era insulto.
Por mim, ainda não desisti de pôr os olhos nos melhores.
Porque é que o meu avô, que tinha a quarta classe, possuía um dicionário de sinónimos? Porque é que os meus tios, que tinham ido ao liceu mas nem por isso se dedicavam a tarefas intelectuais, usavam o dicionário de sinónimos dele? Não era só por serem charadistas, todos eles. Mas mesmo que fosse. Brincava-se às palavras, naquele tempo. Brinca-se a quê, agora?
Tenho de falar com o Abreu, a vez se ele me encaderna o dicionário de sinónimos do meu avô. Já o encadernei eu, na juventude, mas toscamente. Gostava que durasse outros vinte anos. Outros sessenta.
Oxalá o Abreu conseguisse conservar a capa carmesim e os títulos a dourado, como é próprio de um objecto de luxo.

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* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”



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