Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO


Logo que seja com saúde

Lugar dos Dois Caminhos, 15 de Janeiro
Ouço as primeiras intervenções de Rui Rio como presidente indigitado do PSD, portanto a escassos dias de se tornar líder da oposição de um país com um governo assente num acordo parlamentar frágil e conjuntural, e custa-me acreditar. Primeiro, uma série de banalidades – sem uma novidade, sem um sinal inspirador. Depois, e à falta delas e deles, uma súbita veemência a propósito da cultura, com direito a rodapé e tudo: “Uma coisa é dar subsídios para espectáculos sem público, outra aplicar o dinheiro em projectos rentáveis.”
Naturalmente, apressam-se os homens à volta dele, mais  todos os que gostariam de estar – sobretudo estes –, a explicar que a frase não pode ser descontextualizada. Mas o esforço, sendo comovente, é também inútil. O que Rio acaba de declarar é um princípio. Os princípios existem para se sobreporem aos contextos. E este é absurdo.
É absurdo, desde logo, do ponto de vista do posicionamento ideológico do partido. Se o PSD é social-democrata, como promete o novo presidente, então tem de entender que cabe ao Estado garantir que todos (e não apenas a maioria) disponham de cultura à sua medida. E se é liberal, como pretendem os militantes – inclusive os que votaram no novo presidente –, então o desconcerto é maior ainda. Uma cultura que já tem público não precisa da intervenção do Estado. Pelo contrário, se o Estado intervier nela, estará a vampirizar os agentes privados, que de bom grado actuariam livremente no sector, à procura do lucro que ali há para fazer.
Tudo isto é tão evidente que nem devia precisar de ser dito. Talvez por isso tenha deixado de sê-lo. De resto, o PSD já era uma confusão ideológica antes de Rui Rio e vai continuar a ser uma confusão ideológica depois dele. Não o levo a mal: eu também sou. Só que, com ou sem ideologia, a ideia aqui em causa continua absurda, em concreto como em abstracto.
Absurda em abstracto porque, ao contrário do que Rui Rio, os homens à volta dele e os que gostariam de estar pensam (ou melhor, julgam), a cultura não é entretenimento. Às vezes coincide com o entretenimento – pessoalmente, aprecio quando o faz –, mas não “é” entretenimento. Não é uma coisa gira. Não serve para animar a malta. Sobretudo isto: não é animação. A cultura aspira a transformar o mundo. A cultura reinventa. E, portanto, igualar a oferta à procura, sendo eventualmente razoável em termos de estratégia económica (se tanto), não constituiu estratégia cultural. Estratégia cultural é permitir à oferta o engrandecimento da procura. E é, já agora, permitir-me a mim e ao leitor, pagadores de impostos, a possibilidade de escolher: entre cultura erudita, cultura popular, todas as culturas que há entre elas e ainda as gradações de cada uma.
Bem sei: não é fácil fazê-lo num país em que tantos governos, de esquerda e de direita, mantiveram instituído que a cultura deve ficar sob a mesma tutela do desporto, da juventude e das restantes matérias destinadas ao pessoal que gosta de fazer coisas. Não é fácil fazê-lo num país em que os telejornais – insisto – deixam as notícias sobre cultura para o final, altura em que o pivô já vai anunciando as peças com um sorrisinho. Não é seguramente fácil fazê-lo num país em que, mais de quarenta anos depois da revolução que ia acabar com a lógica do pão-e-circo, a cultura continua a não ser vista como um bem essencial. Mas é, realmente, o que tem de ser feito.
Isto em abstracto. Em concreto, o absurdo mantém-se, e os que vivem em terras pequenas sabem bem do que falo.
Esteja em Trás-Os-Montes ou no Minho, nas Beiras ou no Alentejo, no Algarve ou nas ilhas – e nas ilhas dos Açores também –, quem vive no campo (ou à volta dele) é quem mais facilmente pode explicar a Rui Rio por que precisa de rever o princípio orientador que traz para uma política cultural. No campo – com mágoa o reconhece quem tem passado a vida a enaltecer os seus valores –, a cultura não é entendida como uma prática quotidiana, muito menos como uma necessidade: é entendida como um conjunto de eventos. No campo, a cultura não apenas é sobretudo animação como, ainda por cima, é sobretudo animação para a) as crianças ou b) os obcecados das tradições. No campo, a cultura existe em função do número de espectadores/ouvintes/leitores – muito mais do que por escassez de recursos – porque esses espectadores/ouvintes/leitores significam votos.
No campo, cultura que não reúne crianças, não serve de bandeira etnográfica e, em suma, não dá votos tem de ser auto-sustentável, coisa que a escassez de população não permite. No campo, a cultura vive de ditadura em ditadura. Não reinventa, não aspira a transformar o mundo. Entretém. Anima. Alimenta os tribalismos. Reúne votos – e mais nada. Ignora-se a sua vocação formativa porque a última coisa em que se pensa é em formar. Ignora-se a sua capacidade para propiciar a mobilidade social porque a mobilidade social é a última preocupação tanto (imagine-se) de quem se diz social-democrata como (pasme-se) de quem se diz liberal. E é essa a cultura que Rui Rio – que de facto não é social-democrata nem liberal, mas um tecnocrata despachado, pouco lido e um nadinha autoritário –, propõe para o país. Para o país todo.
Ora aí está uma tragédia que já chega orgulhosa da sua condição de tragédia.


* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”

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