Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO


Por toda a banda onde uma pessoa passa é Natal

Lugar dos Dois Caminhos, 20 de Dezembro
Esta manhã liguei o Roberts para ouvir o Fernando Alves. Falava de um livro. Comi a tosta matinal sentado à mesa, como tão poucas vezes. Tomei um café longo, com os cães cirandando em volta, na esperança de migalhas, e depois fui fumar um cigarro à porta – o Roberts soando ainda, brandamente, com o noticiário das nove agora.
Dois anos depois, consegui finalmente recuperá-lo. E, com isso, o meu dia mudou.
Comprei aquele pequeno aparelho quando nos mudámos para ilha. De tudo o que de Lisboa prevíamos que nos fizesse falta aqui – os afectos, um cartaz de cinema para pessoas ainda não acometidas de morte cerebral e a TSF –, podíamos obviar ao menos à falta da TSF, com um rádio wifi. Aquele custou-me uma centena de euros e valeu cada cêntimo.
Durante três anos, ouvimo-lo como ouvíamos, em Lisboa, um rádio comum. Tínhamos uma aparelhagem moderna, computadores, telefones, iPads. Mas não havia comodidade como aquela. Uma pessoa carregava no on e ouvia rádio. Ia tomar banho e levava o rádio da sala para a casa de banho.
Até que o Roberts se avariou e essa doce rotina começou a desmoronar-se. Passámos a usar os telemóveis. Mas os telemóveis não têm amplificação suficiente para se ouvir com conforto durante um duche, pelo que comprámos colunas bluetooth. Mas as colunas bluetooth precisam de ser emparelhadas a toda a hora, pelo que de vez em quando usávamos o televisor. Mas o televisor não se podia levar para a casa de banho, pelo que já havia dias em que não ouvíamos rádio.
Assim mesmo: já havia dias em que não ouvíamos rádio. Logo nós.
Pus-me à procura de alternativas. Encomendei pela Internet outros dois aparelhos – nenhum chegou a funcionar. De viagem, procurei irmãos do Roberts na Alemanha e em Inglaterra, nos Estados Unidos e até no Brasil – em todo o lado olharam para mim como para um dinossauro, me disseram que o rádio wifi se tornara uma coisa obsoleta (cito com rigor) e me sugeriram novas colunas, mais modernas ainda.
Comprei novas colunas, mais modernas ainda. Ao fim de uma semana não tínhamos paciência para os erros de sincronização, a falta de bateria, a má portabilidade.
Até que, há dias, me lembrei de como o meu avô fazia as coisas. Peguei no Roberts, levei-o a uma oficinazinha de reparações electrónicas aqui em Angra e fui atendido por um daqueles rapazes todos despachados, afundado entre computadores velhos e fios mal enrolados. Olhou o Roberts como a uma relíquia, pegou-lhe com cuidado, para não o partir, e mandou-me voltar no dia seguinte. Voltei, paguei doze euros e agora tenho-o ali, a debitar a edição da manhã.
É o meu presente de Natal. Dois presentes, na verdade: o Roberts reparado e a razoabilidade de volta. Exactamente quando é que eu me tinha tornado de novo um consumista inconsequente, mau mordomo do dinheiro e da liberdade?

Lugar dos Dois Caminhos, 22 de Dezembro
Ontem já liguei para o Silveira, a encomendar dois sacos de búzios para o fim de ano. Vêm nas jaulas das lagostas, conta-me ele, e às vezes apanham-nos os mergulhadores. São grandes e saborosos, embora dêem trabalho a amanhar. Eu faço com eles uma feijoada em que incluo algumas das técnicas da alcatra terceirense e levo a servir num alguidar de alcatra também.
O maior segredo está no entalão. Para cozinhar devidamente uma porção de búzios, a primeira coisa a fazer é levá-los ao lume em água e sal – bastante sal – durante rigorosamente quarenta e cinco minutos. Menos, ficam crus. Mais, aborracham.
Depois, é preciso limpá-los, que é o pior. Limpar búzios do tamanho dos que uso, iguais àqueles que as crianças levam ao ouvido e ouvem o mar, exige tirá-los das conchas, extirpá-los de tudo o que é víscera e fluido e lavá-los com água abundante.
A partir daqui, é fácil. Eu pico-os miudinhos e depois levo-os a cozinhar uns minutos em verdelho. Entretanto, já tenho o feijão manteiga demolhado e cozido. Faço um refogado de cebola, alho e tomate, junto-lhes pimenta da Jamaica, cravinho da Índia, sacanas de Moçambique e louro dos Dois Caminhos, levo tudo ao lume durante mais uns minutos e, finalmente, passo para um alguidar de barro não vidrado e untado com manteiga – il faut monter au beurre, il faut toujours monter au beurre – , para gratinar durante o tempo que sobrar.
Sirvo polvilhado com coentros e decorado com camarões cozidos em água e casca de cebola, bem arrefecidos em água e gelo para ficarem durinhos. A ideia é acompanhar com arroz branco. Mas, como cozinheiro, eu sou um artista que não desperdiça o génio criativo com minudências como o arroz – nunca o tenho pronto a tempo.
Também conta a história das Descobertas, a minha feijoada de búzios. Para a semana vou fazê-la para os Simões e os Pereiras, que apresentarão as suas últimas criações também. E depois ainda tenho de cozinhá-la mais umas quantas vezes em Janeiro, porque me lembrei de falar nela em público e, entretanto, abundaram as cravas.
Agora quem se amola é o meu indicador. À conta de tanta feijoada – aqui há umas semanas tive de cozinhar três alguidares para vinte pessoas, quinze quilos de búzios amanhados à mão –, já tenho o indicador de um apanhador de algodão. Para o ano a ver se desenvolvo uma receita de salada fresca.



* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”

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