Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO


Credo, eu até fiquei embaçada

Lugar dos Dois Caminhos, 21 de Novembro
No meu jardim há um recanto onde ninguém vai. Fica atrás do limoeiro. Agora tem lá ido o Chico porque foi ali que fizemos um viveiro de folhas-de-sangue. Eu já não lá ia há bastante tempo. Fui lá hoje. Tinha passado a tarde a plantar em vasos estacas de hibiscos, vinhas verdes, heras americanas. Tinha metido directamente na terra vários gerânios, três peperómias, uma urze mexicana, miudezas diversas. Fui conferir o viveiro. E, de súbito, a revelação: ora aqui está um lugar onde não vem ninguém.
Creio que é aí que um jardim passa a ser um jardim: no dia em que se verifica já ter pelo menos um recanto onde não vai ninguém. Nesse recanto poderá uma criança dar o seu primeiro beijo. Nesse recanto poderá um adolescente fumar o seu primeiro cigarro. Nesse recanto poderei eu lamentar um fracasso humilhante ou celebrar um triunfo mesquinho. Sempre quis ter um recanto assim, embora tenha dado os meus primeiros beijos numa garagem, fumado os meus primeiros cigarros debaixo de um castanheiro e nem sempre tenha tido o discernimento de lamentar os fracassos e celebrar os triunfos em privado.
Talvez possa fazê-lo agora, embora não volte a haver primeiro beijo, nem primeiro cigarro, nem tão-pouco a dignidade imaculada de quem nunca se envergonhou em público. “Não há recomeços”, dizia Steiner. Mas, para o caso de haver milagres, até posso vir a mudar o ordenamento ao jardim, agora que o pomar se vai espalhando: aquele recanto fica.

Lugar dos Dois Caminhos, 24 de Novembro
Agora, todos os anos as mortes de figuras públicas enformam um padrão novo. Em 2015, se bem me lembro, estávamos na fase dos Rest-in-peaces. Morria alguém e corríamos para as redes sociais, a sentenciar: “RIP”. Um ET acabado de pousar na Terra – para usar a velha imagem da cultura pop – quebrava o código dos nossos circuitos e poderia ouvir a canção:

RIP, RIP
RIP, RIP, RIP
RIP Laranja
RIP Cristal

Entretanto, deixámos – nós, os fixes – essa coisa dos Rest-in-peaces para o povo. Em 2016, morria alguém e púnhamo-nos: “Oh, meu Deus, mais um?!” Foi o ano em que morreram cantores, actores de cinema, poetas. Nós, os fixes, somos tu-cá-tu-lá com os cantores, os actores de cinema e os poetas. Gostávamos de cada um deles antes de o povo gostar. Tínhamos amansado a paixão quando o povo começou a gostar, mas conservávamos a superioridade moral da procedência.
Este ano, ainda não havia um padrão. Hoje morreu Pedro Rolo Duarte e apressámo-nos todos a contar as nossas histórias com Pedro Rolo Duarte. Os dias em que o conhecemos. As festas em que o vimos. Os feitos profissionais que lhe celebrámos. O modo como nos tocavam a nós, os fixes (cada um mais fixe que o próximo), como a mais ninguém.
O problema é que em nenhuma das histórias Pedro Rolo Duarte era o protagonista. Éramos sempre nós. O que teria algo de constrangedor em qualquer morte, mas chega a ser inquietante quando quem está em causa é alguém que passou a vida a fazer os outros brilhar.
Certamente que algum género de justiça se faz a um homem quando ninguém quer ficar fora do círculo íntimo da sua despedida. Mas Pedro Rolo Duarte entrevistou-nos a todos. Deu-nos trabalho a todos, nas revistas e nos jornais que editou e dirigiu. Merecia que, ao menos no momento da sua morte, o deixássemos fazer o papel principal.
Não deixámos. Vivemos o tempo do solipsismo. Banalizámos a memória para lá de todos os limites. Mas continuamos muito fixes.

Lugar dos Dois Caminhos, 25 de Novembro
Hoje fomos aos Biscoitos apenas para comprar duas bolachas. Ontem já tínhamos ido aos Biscoitos duas vezes. Da primeira, atravessámos a ilha, descemos entre os áceres que bordejam a estrada junto ao entroncamento que dá para a Caparica e fomos à padaria da D. Délia Martins comprar o pão caseiro que o Garrido nos aconselhou. Entretanto, tornámos a Angra para comprar um frango assado, já a pensar naqueles áceres – e voltámos lá comê-lo, à sombra deles.
Noutros lugares, oitenta quilómetros de estrada pode não ser demasiado para um piquenique feliz, este. Aqui é. E, no entanto, não foi apenas um piquenique feliz: foi um piquenique mágico. Pelos áceres, pelo pão de côdea grossa e pelas duas bolachas – na verdade, dois biscoitos – que, servidos do que atravessáramos a ilha para comprar, juntáramos por acaso ao avio.
De maneira que hoje tornámos a atravessar a ilha, para lá e para cá, só para ir comprar mais dois biscoitos. De cacau. Polvilhados de um açúcar tão grosseiro como o polvilharia uma avó. Estaladiços da primeira à última dentada. Doces e íntimos e nunca enjoativos.
À noite chegámos a sentir a tentação de ir à Internet, em busca da receita. Tenho a certeza de que está publicada algures uma receita semelhante. Versados como somos em pecados mortais, é quase certo que conseguiríamos aproximar-nos.
Mas aproximarmo-nos não chegaria. Aquele biscoito é perfeito. Traz consigo a alameda de áceres que se desce em direcção a ele. E resolve-me um problema antigo. Há vinte e cinco anos que levo aos Biscoitos visitantes que adoram os Biscoitos, me perguntam de onde vem o nome Biscoitos e se acometem de uma indisfarçável decepção quando lhes digo: vem da pedra basáltica que tanto abunda na freguesia.
A partir de agora, vou dizer que vem dos biscoitos de cacau da D. Délia.



* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”

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