Frans Krajcberg, o poeta da madeira, morreu aos 96 anos no Rio de Janeiro

DO TEXTO:

Frans Krajcberg: O poeta da madeira (1917-2017)

DIEGO ESCOSTEGUY - EDITOR-CHEFE

Sob o silêncio das mortes tranquilas, tombou na quarta­feira (15/11) o artista irremovível, que viveu para gritar, em poemas de madeira, contra a destruição da floresta brasileira. Frans Krajcberg não morreu em vida antes de extinguir-se aos 96 anos; não permitiu que seu espírito apodrecesse sob o pesticida dos cinismos confortáveis. Viveu até o fim uma vida plena de amor e arte, de comunhão criativa com a natureza de sua terra em Nova Viçosa, no sul da Bahia. Sua obra – pinturas, fotografias, esculturas – fincou raízes definitivas na arte contemporânea. Os brasileiros, e o mundo, não precisavam dela para conhecer a devastação da Amazônia e nossa agressão incessante ao planeta. Esses fatos são notórios há muito tempo. Por meio de sua arte, Krajcberg nos ofereceu algo mais raro, precioso: sua dor – a dor humana – diante dessa tragédia. Ofereceu-nos a sempre estranha possibilidade de empatia com outros organismos vivos. Pelo engenho e pela sensibilidade de Krajcberg, uma árvore calcinada deixava de ser somente mais um pedaço de madeira retorcido, abandonada à irrelevância dos grandes cinzeiros amazônicos. A árvore calcinada ganhava, em morte, a vida que tivera antes de ser assassinada pelo homem. Krajcberg era um artista tão soberano de sua técnica que extraía de restos de madeira, a um só tempo, afeto, beleza e sofrimento. Algo de sublime atravessa todos os troncos que esculpiu. Graças à arte de Krajcberg, o Brasil e o mundo puderam não apenas ver, mas sentir o lento e seguro assassinar de tudo que é verde no país. Ainda que o desmatamento das florestas e o desprezo dos homens pelo meio ambiente persistam, hoje ambos são seguramente menores do que eram antes de Krajcberg.

SUBLIME
Frans Krajcberg em sua casa, na Bahia. O artista que falava pela madeira 
(Foto: Eduardo Knapp/Folhapress)

“A imprensa insiste em dizer que sou polonês naturalizado brasileiro; não sou. Sou brasileiro”, disse certa vez Krajcberg. Ele nasceu em Kozienice, em 1921. Muito cedo conheceu a alma sombria da humanidade. Serviu na Segunda Guerra Mundial; sua família foi dizimada pelos nazistas em campos de concentração. Estudou com mestres das artes plásticas antes de “fugir do homem”, ao vir para o Brasil em 1948. A fuga da fuga transcorreu não muito depois, quando se cansou dos homens, brasileiros ou não, e passou a viver cada vez mais em contato com a natureza, fazendo da terra sua morada e estúdio. Quando se estabeleceu em Nova Viçosa, em 1972, já estava consagrado. As décadas seguintes gravaram sua fúria estética nas madeiras da Bahia e, com elas, na arte brasileira e mundial.


A morte de tão formidável artista, um dos maiores da história do país, nos permite a possibilidade de reconhecer, mais uma vez, a dívida afetiva que temos com ele. Permite-nos celebrar, ainda que modestamente, a imensa contribuição de Krajcberg para a vida pública de um Brasil tão castigado por homens e mulheres que têm os próprios interesses como guia inquestionável para suas ações mesquinhas. A vida pública de um país não se faz somente com decisões políticas e números econômicos. A cultura, a arte, termos carregados e repletos de rica controvérsia, precisam estar presentes, inclusive nas políticas públicas de nossos governantes, algo cada vez mais raro. E precisam estar presentes não por uma razão pragmática, como conhecer a devastação das florestas ou a pobreza de determinado lugar. Precisam estar presentes porque são o coração de qualquer corpo político, qualquer nação. Precisam existir porque o belo e o sublime que correm nas artérias da cultura nos constituem, também, como cidadãos. Literatura, artes plásticas, teatro, dança, folclore: todo o rico acervo de manifestações artísticas – livres, sempre livres – que compõem a cultura brasileira compõe, é claro, a obra maior de nosso país. Quem fomos, quem somos e quem queremos ser. Assim florescemos.

 

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