Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:


REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO


Ah, moça, hoje vieste de saltos de queda alta?

Terra Chã, 21 de Agosto
Começa a parecer-me que gostamos demasiado de dizer que o terrorismo não nos mete medo. A melhor maneira de resistir – insistimos, procurando erguer a voz sobre a multidão sem chegar a desafinar com ela – é ter coragem.
A manutenção do modo de vida. As rotinas contra a violência aleatória e cruel. Muita coragem.
Coragem.
Pergunto-me se será com coragem que se resiste ao ataque cobarde. A coragem está a perder esta guerra. Talvez devêssemos experimentar a inteligência.

Terra Chã, 23 de Agosto
Que pássaro é este que dorme nas minhas faias? Ouço-o à noite, quando venho à rua fumar um cigarro depois do jantar. Não o conheço. Sacode-se horas infinitas, como numa agonia. Anda de ramo em ramo, inquieto.
Parece grande.
Talvez seja o mesmo que venho ouvindo há anos, algures lá de fora, quando começa a Primavera. Vou à porta, olho em volta, e nada. Há dias julguei tê-lo ouvido através de uma das janelas da estrada. Abri o vidro, esquadrinhei os fios eléctricos, e nada de novo.
Posso ouvi-lo, mas não o vejo. Não creio que se trate de um desses pássaros comuns que encontro desde a infância. Canta numa prece, longa ou apressada. Chora. Mas a verdade é que nunca o seu suplício é tão suplicioso como à noite, quando tenta dormir.
Ouço-o quando fumo um cigarro depois do jantar e torno a ouvi-lo quando volto ao jardim, para fumar de novo. É o meu pássaro insone, e às vezes convenço-me de que o criou a minha imaginação, para me mitigar a solidão da vigília.

Terra Chã, 24 de Agosto
A verdade é esta: percorro os jornais, cruzo-os com o Facebook e, muitas vezes, já não encontro diferença. Vou à televisão, atravesso os canais tradicionais e os de notícias – nenhuma diferença. Ando pelas rádios, pelos sites, pelos cafés: diferença nenhuma.
Muito pouca.
A comoçãozinha do dia está de volta. A sexualidade dos governantes e o sexismo dos manuais escolares são discutidos numa perspectiva esquerda/direita. O terrorismo é discutido numa perspectiva esquerda/direita – até os fogos florestais são discutidos numa perspectiva esquerda/direita.
É triunfo da política O-Dia-Seguinte, dos jovens deputados excitadiços e dos velhos senadores ensonados. E, na expectativa do que esperam vir a constituir o combate final, a esquerda gin-tónico (perdão: gin) e a direita Praça-de-Toiros-da-Chamusca vão procurando engrossar fileiras.
É claro: grande parte disto está na Internet e não devia ter a importância que tem. Só que os leitores querem cada vez menos informação, as redacções estão cada vez mais depauperadas, os jornalistas têm cada vez menos tempo ou – pior – querem cada vez mais pertencer. Basta um novo prosélito esmurrar o próprio peito ou o nariz do vizinho, e de imediato o murro salta para as páginas interiores.
Se for um murro bem dado, para a capa. Se for um murro mesmo bem dado, até – pedem alguns – para o planetário da Assembleia da República.
A autolegitimação impera. As pessoas precisam de respeito e, aparentemente, só a superioridade moral lho pode garantir. As pessoas precisam de companhia e, inevitavelmente, só a superioridade moral lho pode garantir.
Conscientes disso, a esquerda gin-tónico (perdão: gin) faz um ar muito sério, porque está a ver o que mais ninguém vê, e a direita Praça-de-Toiros-da-Chamusca um ar muito cínico, porque já viu isso e muito mais. E na próxima semana aqui estamos de novo, à mesma hora, para discutir os lances polémicos do fim-de-semana.
Chamamos-lhes sound bite, mas podíamos chamar-lhe outra coisa. Vejo-o bem daqui, porque é em Lisboa que nascem, crescem e morrem as comoçõezinhas do dia. Mas, viver, vivem em todo o lado. Até na esplanada do Cais D’Angra, aos sábados, quando as famílias saem beber gin tónico (perdão: gin).
Se alguma coisa nunca deixou de caracterizar um provinciano, foi o desejo de ser mais lisboeta do que o provinciano do lado.

Terra Chã, 25 de Agosto
Esta manhã, assei uma cavala. Agora a cavala está muito na moda, por causa do ómega-3 e dos chefs famosos, mas houve um tempo em que era peixe de segunda. Se calhar continua a ser peixe de segunda, tão barato se vende – mas então antes era de terceira.
A verdade é que é um dos melhores entre os peixes mais pescados aqui à volta. A cavala e a veja, outra mal-amada. A cavala é saborosa, a veja suculenta. E ambas têm pouca espinha, o que para uma lisboeta como a Catarina constitui virtude.
Comprei uma de cada, esta manhã. A cavala já está no forno, quase pronta, à espera apenas do último calorzinho antes do almoço. A veja há-de cozinhá-la a Catarina, quando voltar do ginásio.
É uma rotina de todo o ano, mas especialmente sedutora no Verão. Acordamos, tratamos dos cães e damos um salto ao Guarita. Às vezes vemos a Lídia. Todos os dias tomamos café na Márcia. Compramos o peixe, o pão e as miudezas – e vimos para casa cozinhar.
No regresso, ligo o Glen Hansard e a Marketa Irglova, baixinho. Abrando junto ao Carlinhos, que está a pintar a casa do sr. Nunes. Antes de abrir a porta de casa, faço um desvio aos canteiros, a apanhar coentros. Ainda não são nove horas e já a cavala está no forno.
Então, unto duas fatias de pão com manteiga, faço um café fumegante e sento-me a responder aos e-mails, com o Melville deitado aos pés. O dia parece-me infinito. É o único momento em que o dia me parece infinito.


* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”


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