Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:


REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO


Aquele Zé Manel é uma piedade

Terra Chã, 18 de Agosto
No Verão, olho o meu jardim e acho que, se algum conseguimento tenho para apresentar, é ele. Podia dizer-se que todos os anos cresce imenso, se não se desse o caso de, nesta altura, se poder vê-lo crescer de um dia para o outro. Ainda há duas semanas plantei os pés de tomate-de-capucho que germinei no Inverno: já duplicaram o tamanho.
Não foram as últimas coisas que lhe acrescentei. Depois disso já plantei as cristas-de-galo que a Luísa me deu e um monte de novos galhos de iresine. As iresines – também se lhes chama coração-magoado, mas não é o caso – dão-se bem em qualquer clima. Vivem ao sol e à sombra, com água e quase sem ela, sob as chuvas de Abril e as ventanias de Setembro. Já comecei a espalhá-las pelos canteiros de begónias que replanto ao domingo e os cães destroem à segunda. Agora vou fazer viveiros para as plantar no lugar das hortênsias com que quis bordejar o espaço conquistado à mata, e que a sombra das acácias aniquilou.
Costumo dizer que tenho um jardim de azáleas, mas em breve terei sobretudo um jardim de iresines. Ou de rosas dos beirais. Ou de bunganvílias. Duas das minhas buganvílias têm hoje a pose de velhas senhoras, trepando latadas e gelosias, cobrindo vedações e muros de pedra. Outra não tarda a deixar-se moldar por sobre o paredão, e à quarta apenas faltam os genes, não a vontade.
Gosto das minhas buganvílias. Sempre quis ter um jardim de buganvílias. E de corações-de-negro, a que no continente se chama anoneiras (como aos tomates-de-capucho fisális): tenho quatro. E de olaias, como aquelas que encontrava a caminho do liceu: tenho duas. E de macieiras, se possível iguais às do meu avô: duas também. E de liquidâmbares, como os da Nova Inglaterra: dois. E de faias, como aquelas a que nos abrigámos depois do terramoto: cinco.
E de araucárias como as que rasgam os céus de Angra, e de criptomérias como aquelas de que fazíamos árvore de Natal, e de jacarandás como os que mosqueiam Lisboa em Maio, e de plátanos como aqueles em que eu me pendurava em casa da Tia Evangelina, e de castanheiros como os que o meu avô tinha também, e de limoeiros como aqueles de que o meu pai cuidava, e de calistemos como os que eu redescobria nas férias – e de araçaleiros e de romãzeiras e de macadâmias e de cafezeiros e de goiabeiras e de laranjeiras e de clementineiras e de pitangas e de groselheiras e de azevinhos e de dragoeiros e de ócnas e de loureiros e de amoreiras.
E de tipuanas como a primeira árvore grande que plantei e, num acesso de não sei que parvoíce, mandei arrancar. Acho que foi porque as pétalas amarelas sujavam muito a relva. Pétalas sujando relva – não se pode ser mais estúpido. Portanto, tornei a ter uma tipuana, como agora tenho de tudo o resto.
Já foi horta, o meu jardim. Mas, como no campo o tempo é igualmente finito, por agora só tenho tomates-de-capucho (fora as aromáticas). Nem é bem jardim, o meu jardim: é meio quintal. Ou talvez pomar. Ademais, serão uns 400m2: há muita coisa encavalitada. E ainda quero, no próximo Inverno, plantar pelo menos uma nespereira, uma pereira e uma figueira.
De resto, falo na primeira pessoa, mas para facilitar. Fomos muitos, os que empreenderam neste jardim ao longo dos anos. A Catarina. O Cotrim, que me fez a churrasqueira. O Jordi, que plantou as faias, de botas-de-cano, rindo. O Jorge Tiago, o Zé e, antes deles, a Bia, que me arranjaram plantios. A Teresa e o Ormonde, que me dispensam de comprar pela Internet. O Rodrigo, que chegou a vir tratar da horta nas minhas férias. O senhor Dimas, que me faz as podas com o Diogo (como as fizera José Nogueira). O José Gabriel que me deu o plátano, o sr. Rogério que me pintou os muros no ano passado, o Fernando que me ajudou a plantar na Primavera – amigos, conhecidos, biscateiros, familiares, os meus pais: se este jardim fosse um livro, o agradecimentos ocupavam páginas.
Mas o Chico acima de todos. Trabalha nele há quase dez anos, agora – um dia por semana, todas as semanas, sempre com o mesmo brilho no olhar. E eu talvez devesse dizer que faz tudo como se o jardim fosse dele, mas o facto é que faz tudo como se o jardim fosse nosso. É isso que este jardim é.
Não são enumeráveis, os obstáculos que derrubámos nesta década. Antes de ser um jardim, este jardim foi logradouro agrícola, galinheiro, pátio de campanha, baldio. Pegámos nele e ordenámos que se fizesse luz. Criámos a terra seca, a grama, as árvores e todas as espécies de plantas. Derramámos sobre ele oceanos. Construímos muros, passeios e degraus, escadinhas, braseiras e armários de rua. Tirando os corta-relvas e a betoneira do meu pai, só entrou aqui uma máquina: a retroescavadora com que o Lúcio demoliu a casa-de-despejo. Tudo o mais foi de enxada e carrinho de cantoneiro.
Nunca acaba, um jardim – nunca se concretiza. Por exemplo, agora gostava de forrar com vinha virgem o muro da Fonte Faneca. Trouxe um pé de Aveiro – não vingou. Trouxe outro de Tormes, imaginando-o demolidor como Eça – começa a fraquejar. Qualquer dia prendem-me na alfândega por traficar botânica. Mas, se me sentar a olhar para os tomate-de-capucho, neste tempo abençoado, vejo-os crescer a olho nu. E se não vir, basta-me levantar o rosto para o Chico e para aquele entusiasmo juvenil, aquela confiança inabalável dos homens em cujas mãos nada morre – amanhã já quero ir à procura de vinha virgem outra vez.



* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”

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