Do escritor Joel neto

DO TEXTO:


REGRESSO A CASA
Um diário açoriano
de JOEL NETO

Home’, boa noite

Terra Chã, 3 de Junho
Esta tarde fomos à Silveira. A água estava fria e à esquina dos mauzões postavam-se agora uns garotos cabo-verdianos, com um rádio de onde saía uma kizomba bastante má, e que eles iam acompanhando com uns movimentos de cabeça saídos de um videoclip dos anos 80. Mas não havia caravelas nem águas-vivas, e o sol por que tanto temos suspirado decidiu dar sinal de vida. Estendi a toalha na Piscina, untei um factor-30 oleoso e fiquei a ouvir os ruídos da praia da minha infância, com aquela kizomba roufenhando ao fundo como no meu tempo roufenhavam canções pop americanas ou – pior – baladas hard rock alemãs.
Havia menos crianças do que haverá a partir das Sanjoaninas e em redor não ecoavam os habituais saltos para a água, que as plataformas ainda nem foram montadas. E, porém, era a Silveira, a Silveira toda e imutável, e a certa altura apeteceu-me ficar ali noite dentro, o fim-de-semana inteiro, em busca dessa outra juventude que era a metade urbana de nós, feita de viagens à boleia, modorra e provas de coragem.
Andávamos à boleia não porque precisássemos, mas porque queríamos poupar os cem escudos para comprar gelados e porque a universidade ficava aqui na Terra Chã: os vizinhos estavam habituados a dar boleias. Íamos à boleia para baixo e voltávamos à boleia para cima, eu e a Laura, e no intervalo espraiava-se tudo o que faz parte de um bom dia de férias grandes em plena idade do ócio, mas com a atmosfera de uma praia mediterrânica onde caberia tão bem um mistério de Poirot como um conto desesperado de Thomas Mann.
À Piscina onde hoje estendi a toalha, chamamos-lhe assim porque um dia houve ali uma piscina. Era de água doce e recebia as crianças que não sabiam nadar. Veio a ser entulhada quanto a câmara criou a Prainha, do outro lado do Monte Brasil, mas não perdeu o nome. Ainda hoje a Silveira se divide entre as Pedrinhas e os Ferrinhos, o Cais e a Piscina. E as tribos são as mesmas: os bêbedos e os inconvenientemente trajados nas Pedrinhas; as famílias e os mais pobres nos Ferrinhos; os adolescentes emancipados e os fixes no Cais; os artistas e os mesmo-mesmo fixes na Piscina.
Eu nunca fui para as Pedrinhas, a não ser, talvez, para espreitar umas raparigas de fora que, numa tarde que ficou no folclore da cidade, decidiram apanhar sol em topless. Fui para os Ferrinhos algumas vezes, com os meus pais, e já não pude tentar evoluir para a Piscina porque, entretanto, me mudei para Lisboa. A maior parte do tempo, passei-o no Cais, para onde me transferi quando comecei a fazer o bigode, e de cuja prancha eu e o meu pai saltávamos de cabeça.
Tinham o seu quê de rito de passagem, aqueles mergulhos a dois, e estar na companhia do meu pai não me fazia menos fixe. O meu pai era fixe. Trepava o guindaste como um babuíno, erguia-se a direito onde eu nunca conseguira sequer subir e deixava-se cair teatralmente, os murmúrios agigantando-se em volta:
– Olha o velho! Olha o velho!
(Coisa hoje assaz desconcertante, diga-se, porque já tenho a idade que ele tinha na altura e, ainda por cima, descobri que nem do Cais consigo agora atirar-me.)
Eram tardes brandas e formidáveis, essas que passávamos na Silveira, ainda não havia telemóveis nem Internet, o dinheiro escasseava e os jogos de vídeo permaneciam menos atraentes do que a oportunidade de ver a Cristiana – era Cristiana? – tirar o vestido que trazia sobre o biquíni.
Que momento incrível, esse em que a Cristiana tirava o vestido, puxando-o pela cabeça, cobrindo e tornando a descobrir o rosto moreno e sardento, sacudindo o cabelo e enchendo o peito de ar quente como num anúncio da Coca-Cola. Pergunto-me o que será feito da Cristiana e se saberá que há toda uma geração de rapazes de Angra para os quais umas férias de Verão e a sua silhueta a despir um vestido na Silveira permanecem, até hoje, uma e a mesma coisa. Talvez, lendo isto, se zangasse comigo. Já não era mau, porque nenhum de nós alguma vez quis muito mais da vida do que saber que a Cristiana se dera conta da sua existência.
Tenho quase a certeza de que se chamava Cristiana.
Vi-a hoje, no Cais da Silveira, estendida sobre uma toalha cheia de estilo. Vi a chuva começar a cair e os miúdos atirarem-se à água, como se também isso desse nota da sua bravura. Vi o guincho descer entre as escadas e puxar para terra um chata de barras garridas. Vi os mirones sobre o muro, cobiçando as raparigas dos Ferrinhos. Vi o meu pai escalando o guindaste, com os miúdos a bichanar “Olha o velho!”, e vi-nos até a nós, eu gordinho e irritante, a Laura esguia e complexada – chegando de boleia, zangando-nos um com o outro e separando-nos durante o resto da tarde, até ser hora de apanharmos boleia outra vez.
Não tínhamos fracassos nem dor ainda. Não tínhamos glórias senão aquelas de que nos convencíamos nem nos morrera uma só pessoa que amássemos. Estávamos a caminho de todo o lado e de lado nenhum, como podia ter escrito Dickens – estávamos no melhor e no pior dos tempos, na idade da sabedoria e na da loucura, na época da fé e na da incredulidade, na estação da Luz e na da Escuridão, na Primavera da esperança e no Inverno do desespero: tínhamos tudo e não tínhamos nada à nossa frente, e hoje, estendido no cimento da praia minha infância, eu não tive saudades da Cristiana, mas nossas.

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* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”
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