Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:


REGRESSO A CASA
Um diário açoriano
de JOEL NETO

Tás pa t’inquietá

Lisboa, 22 de Maio
Apanho-o a descer do Castelo para Santa Luzia. Os turistas enxameiam o Largo de Santiago, pelo que nem me importa que o carro seja velho e algo sujo: à primeira luzinha verde que vejo brilhar num tejadilho, ergo a mão. Nem todos os taxistas podem ser briosos como o senhor Hermínio, o filósofo do Porto Judeu, e ademais estou em cima da hora.
O primeiro sobressalto ocorre ainda nem arrancámos. Há uma furgoneta de mercadorias a fazer marcha atrás, outros táxis a chegar com dísticos das mais diversas proveniências, e damos imediatamente por nós em xeque. Abrandamos no sítio errado e logo uma chiadeira de apitos e censuras se ergue em volta. Olho o homem no banco à frente do meu, os colegas lançando-lhe olhares dos mais distintos graus de desprezo, e tento não começar já a sentir pena dele.
Explica-me que não conhece bem os nomes das ruas de Sacavém, mas que vai ligar  GPS. Faz um sorriso quase deleitado, como se a cada momento que repete aquelas três letras, “G-P-S”, voltasse a descobrir a admirabilidade do mundo.
Só dali a pouco percebo que, na verdade, não sabe operar o aparelho. Estamos em Sapadores e eu vou ao telefone. Dou por pararmos, mas só volto a ter consciência disso quando noto que se passaram vários minutos e um total de 60 cêntimos, e nós ainda encostados à berma.
– Que diabo – diz-me ele, na atrapalhação de quem ainda não desistiu de fazer daquilo um momento de humor. – Eu ponho “Praça da República” e dá-me sempre Odivelas...
Respiro fundo. Digo:
– Com licença.
E arranco-lhe o aparelho das mãos.
Encontro a Praça da República certa, acciono o itinerário e resolvo que tão-pouco vou irritar-me com o senhor. É um homem de idade, já não devia andar naquilo, e o compromisso que tenho não tão importante assim. Há uns anos é que todos os compromissos eram igualmente importantes. Digito no telefone: “5m atrasado, desculpa”, e chego-me para trás, a ver desfilar a cidade.
Percorremos as Olaias, Chelas e Cabo Ruivo, a paisagem perdendo cor e higiene. Contornamos o Parque das Nações e descemos Moscavide. Lá atrás, na Morais Soares, a roda do carro batera num passeio. Entretanto, há solavancos, buzinadelas de várias origens, uma inversão de marcha, duas paragens para informações (“Ca raio, então isto há bocado dava-me 400 metros e agora já dá 700?!”), uma travagem a fundo (a rapariga na passadeira muito assustada, o saquinho da H&M com o Tupperware do almoço caído ao chão), e a certa altura nova travagem súbita, porque seguimos em frente onde não devíamos e agora nem podemos voltar para trás.
Respiro fundo de novo.
–  O senhor anda na praça há muitos anos?
– Vinte e quatro – responde ele. – Mas, ouça, uma máquina. Impecável.
– Não, o senhor. É taxista há muito tempo
– Ah, eu? – Sorri. Percebo que não ouve bem. – Há três anos.
Não é tão velho assim, afinal. Diz-me que tem 63 anos, embora pareça 70. Toda a vida foi camionista, mas entretanto a empresa em que trabalhava fechou e já foi bem bom ter conseguido arranjar aquele part-time nos táxis (chama-lhes “táxes”).
– O que é, é que eu tenho uma casa. Em vez de a entregar ao banco, pronto, sempre ando aqui – explica. Não há ponta de lamúria nas suas palavras, embora não seja líquido que não haja raiva. – Um gajo entrega a casa ao banco, e depois? Vai alugar um quarto? Isto um quarto em Lisboa, hoje em dia, nunca é menos de 400 euros. E comer e beber? E as coisas da vida?
Olha-me pelo retrovisor, como se fosse tudo tão evidente que até eu poderei percebê-lo. Ainda estou a tentar estudar o seu sotaque, mas creio que é de Trás-os-Montes.
– E depois um gajo num quarto faz o quê, não é? É uma morte lenta... – reflecte. – Um gajo ali fechado, a pagar uma fortuna e a ter uma morte lenta... Se eu não tivesse uma casa, era outra coisa.
Sim, de Trás-os-Montes. Não consigo arriscar de onde exactamente, mas de Trás-os-Montes. É um transmontano de 63 anos, que foi camionista toda a vida, enviuvou aos 50 e, aos 60, sozinho na casa onde um dia fora feliz, despedido sem indemnização e negligenciado por uma advogada de que nem conseguiu fazer queixa à Ordem em condições, se viu obrigado a dedicar-se a uma das piores profissões de Lisboa, com a ajuda de aparelhos electrónicos que não sabe manejar e sujeito a clientes que se zangam com ele ao primeiro apito de um colega que não o queira ali debaixo dos pés.
Não me surpreendo. Em todas as cidades o crescimento do turismo e do glamour e da notoriedade se revelou directamente proporcional à disseminação, na outra ponta do espectro do sucesso, de histórias desta natureza. O meu erro foi permitir que este homem em particular – o cabelo branco despenteado de sofreguidão, o boné torto largado sobre a cabeça como se não chegasse a pousar nela – ganhasse um rosto, um nome.
É livre e prisioneiro pela mesma razão, o sr. Manuel: tem uma casa. A ideia de casa comove-me sempre. Até para morrer é preciso um lugar.
Quando finalmente olho em volta, percebo que há muito estamos na Praça da República de Sacavém, parados, e que alguém me chama da porta do prédio em frente. Gostaria de continuar aquela conversa. Mas, ainda assim, decido não ter pena daquele homem, que ganhou direito a que eu não tenha pena dele. Limito-me a sentir alguma raiva com ele. 

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* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”


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