Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

REGRESSO A CASA
Um diário açoriano
de JOEL NETO

Tás-te consolando

Terra Chã, 14 de Maio
É domingo de manhã, e eu percorro as cercanias de Angra, em busca de pão fresco. Curvo na Silveira em direcção à Circular, subo até Vale de Linhares, desço em direcção a São Bento e à Carreirinha. E, de repente, aqueles dois velhos no meio da estrada. Lutando.
Abrando o carro, atónito. Devem ter uns oitenta anos, mas isso agora parece-lhes o menos. Um deles, um pouco mais ágil, procura enfiar um directo no nariz do adversário, só que o braço revela-se-lhe curto. O outro alça da mão grande, na intenção de deixá-la cair sobre a cabeça que treme à sua frente, mas não consegue apanhar mais do que uma orelha, fazendo saltar um par de óculos e um acesso de indignação que já parece menos raiva do que mágoa.
Estaciono e atravesso a rua, de sobrolho carregado. Tento chamá-los à razão, segurando um e outro. Agarro o braço do maior, mas é como se nenhum deles notasse a minha presença.
Novos estremeções. Este que agarra aquele (que lhe devolve um ar de mau). Aquele que empurra este (que o ameaça). Um chinelo no meio da estrada. Gemidos e esgares. O mais pequeno a compor a camisa, como se desferir o golpe definitivo, que está convencido de vir a desferir dentro de instantes, exigisse aprumo.
Há ali raiva, sim – não apenas mágoa. Há ali até ódio, e não só um ao outro.
Tento imaginar o que possa ter desencadeado um acesso de fúria daquela natureza entre dois homens tão velhos e não me ocorre o quê. Ali, ao contraluz da manhã, dir-se-iam dois cagarros encandeados e tontos, demasiado grandes para que o tamanho não importe. Olho-os lutando, resistindo às minhas tentativas de separá-los, esgrimindo os corpos como dois trambolhos, arrastando pés, contorcendo os pescoços numa impotência, e sinto-me triste como poucas vezes. 
Que seja possível chegar aos oitenta assim, tomado deste desespero e desta solidão, parece-me de repente a prova derradeira do absurdo disto tudo.
Finalmente, um deles domina o outro. Não o magoa, mas, ao não magoá-lo, só acentua a sua humilhação. Fixa-o nos olhos, a deixar claro que o teve à mercê, e levanta-se para ir apanhar o chinelo.
Ao afastar-se, olha-me de relance, e eu chego a sentir medo dele.

Terra Chã, 16 de Maio
No dia em que pela primeira vez ouvi a canção com que no sábado Salvador Sobral ganhou a Eurovisão, estaquei. A RTP pedira-me para integrar o júri do festival nacional e mandara-me os ficheiros com os temas. Ao chegar a Amar Pelos Dois, chamei a Catarina:
– Anda cá ouvir isto!
Talvez não fosse a melhor canção da história do certame. Só em 1976, o ano em que Carlos do Carmo cantou todas as candidatas, havia várias admiráveis, inclusive uma muito boa, Estrela da Tarde, e outra extraordinária, No Teu Poema (ambas derrotadas). Desta vez, e quanto à letra, havia uns versos sobretudo simpáticos. Mas a melodia era bonita, a espaços muito bonita. A orquestração emprestava-lhe o lastro dos grandes momentos. E a interpretação era, pura e simplesmente, arrebatadora.
Não havia comparação com as rivais, pelo que foi fácil votar. Mesmo assim, e decorrida a gala, ouvi protestos. “Porque é que foste votar naquela porcaria?”, indignou-se um. “Pi pi pi pi... Mas o que é aquilo?!”, macaqueou outro. “Até pode ser bonita, mas não é festivaleira”, sentenciou outro ainda. O que, aliás, batia certo com o dito voto popular: desafiados a contribuir via telefone, os espectadores haviam apostado na cantiguinha de baile do costume, que só não triunfara porque o júri residente – nós – a deixara demasiado atrás.
Foi com certo alívio que, ao aproximar-se o concurso europeu, me cruzei com os primeiros elogios à canção portuguesa. Foi num misto de estupefacção e regozijo que vi, nos dia anteriores ao espectáculo, acumularem-se as loas, as atenções e as probabilidades nas bolsas de apostas. E não foi totalmente sem surpresa que assisti à vitória de Portugal e do seu extraordinário cantor. Mas foi, ainda assim, com menos surpresa do que teria imaginado.
Porque, nessa altura, a narrativa portuguesa já se havia consolidado. E era perfeita. Portugal aparecia com uma canção bonita no meio de uma série de números de circo e pastiches. Isso oferecia ao festival uma oportunidade de redenção. E, ademais, Portugal não era um país qualquer: era o campeão da Europa de futebol, o país de Cristiano Ronaldo, e ao mesmo tempo um dos que nunca tinham ganhado a Eurovisão. Há demasiados anos que era menosprezado pelos vizinhos a Norte, inclusive na economia comum. Talvez estivesse na hora de dar-lhe valor, e até podia acontecer que a próxima edição da festa fosse na cidade da moda: Lisboa.
Para mais, havia Salvador, um milagre absoluto. Cantava como um anjo. Era um rapaz doente e que recusava explorar mediaticamente a sua doença. Tinha uma cumplicidade encantadora com uma irmã bonita e talentosa. Fazia uns trejeitos cómicos ao cantar e, nele, até uma certa arrogância chegava a ficar bem – viesse a censurar o nível médio do concurso da sua própria consagração, num gesto em outros talvez confundível com a má educação, e talvez tivesse mesmo graça.
E foi assim que Portugal ganhou. Epicamente. Romanticamente. Por números nunca dantes registados e abalando as próprias fundações do festival. Mas, sobretudo, comprovando a força de uma boa narrativa. É o que faz de Salvador Sobral um tratado sobre a cultura popular: o modo como demonstra o infinito alcance, a inexorabilidade, o inextricável poder que uma boa história conserva. E isso, para um escritor, é o mais excitante de tudo.

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* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”


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