Em breve teremos saudades dos serões em frente ao lume. Suspiraremos
pelo cheiro a erva húmida e pelo vento carpinteiro martelando contra a porta da
frente. A mais leve camisa empastelar-se-nos-á nos corpos, e nem a água do mar,
tantas vezes revivificadora, será capaz de revivificar-nos.
Ademais, haverá águas-vivas ao longo da costa, talvez caravelas, e todo
o sonho terá ruído há muito.
Teremos saudades do Inverno e teremos até saudades do Outono, de
mitografias menos radicais e escapistas. Teremos saudades dos primeiros frios
de Setembro. Das beladonas e dos ouriços espalhados pelo chão. Das vindimas.
Daquele fogo inaugural que fazemos ainda a medo, incertos sobre a acuidade dele
– da salamandra descarregando cheiros a metal, como se se espreguiçasse.
Parecer-nos-á então um pequeno milagre, a estação fria. Estaremos a
precisar de silêncio – estaremos a precisar muito de silêncio. O campo lida mal
com o silêncio e esta ilha lida mal com o silêncio: ansiaremos pelo silêncio e
até o mais breve momento de silêncio nos parecerá uma longa tarde de silêncio,
cheia de possibilidades e de tempo.
Sonharemos com os nevoeiros e com o enxofre e com a bosta de vaca
desenhando trilhos na estrada, o gado trazido já de volta às terras baixas.
Sonharemos com casacos espessos, sapatos e até chuva, abundante, libertando-nos
das tarefas da seca, que não são tão poucas como isso.
Sonharemos com as olaias, e depois delas as magnólias, e antes – em
princípio – as camélias. Perguntar-nos-emos sobre que Inverno nos esperará, se
desses invernos regulares em que as flores desabrocham pela ordem certa, se
daqueles dissolutos em que desabrocha cada uma quando e como pode.
Não tarda teremos saudades dos serões em frente ao lume, um cheiro
brando a faia queimada espalhando-se pela vizinhança e, por detrás das cortinas
corridas, crianças apetrechando os estojos e as borrachas, os lápis, os
aparadores. Mas, por agora, sentimos no pescoço os primeiros raios de sol do
ano e apetece-nos sair dançando, numa exultação infantil.
Foi longo, muito longo, este Inverno. Lançou-se em temporais ainda em
Agosto e depois demorou-se naquela suspensão tépida com que costuma divertir-se
connosco. Contemplava-nos, mas era como o toiro que vai raspando o casco no
chão, à espera do momento. Quando finalmente investiu, já nos apanhou
desprevenidos: virou-nos de pernas para o ar, passou-nos por cima e depois
levou tudo à frente.
Chegamos a Maio extenuados, como tantas vezes – a chuva caindo-nos em
cima ainda, o vento rugindo por entre os eucaliptos ainda, o frio enregelando-nos
as mãos ainda, a humidade penetrando-nos nos ossos ainda. Mas, de repente, uma
brisa cálida beija-nos ao de leve o pescoço.
Fica um instante apenas, assustadiça, e chegamos a dizer-nos que não,
que ainda não é ela, que há dois meses suportamos o que já mais ninguém suporta
e o melhor será não baixar as defesas. Mas, sem que percebamos bem a sequência
de eventos, da próxima vez que nos damos conta já ela se instalou, e com ela
uma espécie de placidez, e nos rostos que nos dão os bons-dias pela manhã um
sorriso.
É então que nos permitimos ter saudades dos serões no alpendre, à luz
tímida do candeeiro da rua, até a luz nenhuma. Que nos permitimos ter saudades
das noites estreladas e dos grilos cantando pelo jardim. De acordar de manhã e
de sair para a relva descalços e até de, não saindo para a relva descalços,
continuar simplesmente ali deitados, sem cobertores ou edredões, a medir a
temperatura com a pele.
Nessa altura – nesta altura –, permitimo-nos desejar o calor. Já é
razoavelmente seguro. Pensamos em borboletas e campos semeados. Como um animal
que tenteia o espaço depois da hibernação, percebemos que a roupa nos pesa no
corpo, e que a erva húmida afinal molha sapatos e meias, e que bem vistas as
coisas a paisagem já descorou a um tal ponto que, se o Verão não chegasse
depressa, tudo acabaria por reduzir-se a uma amálgama indefinida a que só a
devastação do vento emprestaria textura.
Por isso, abraçamos a fertilidade e ansiamos pelos primeiros mergulhos
na água salgada. Imaginamo-nos a subir os montes de calções, sob a luz jubilosa
de Julho, e a dormir de janela aberta, e a ouvir os foguetes rebentando ao
fundo. Fazemos as contas ao Espírito Santo, e comemos as sopas de carne, e
invejamos aqueles que já compraram os seus fatos e ensaiam as suas marchas para
o São João.
Temos saudades dos serões no alpendre e temos saudades de rebolar com os
cães pelo quintal, sem medo de adoecer e até talvez desconcertados por isso nos
ter preocupado. Temos saudades de passear junto ao mar, e de ficar a ler noite
dentro sob as acácias, à luz da braseira, e de ir comer um boca-negra a São
Mateus, com os barcos entrando e saindo o porto, as crianças sentadas ao longo
do muro, a comer gelados.
Todos os anos é assim: beija-nos o pescoço a primeira brisa cálida do
ano e as coisas por que até aqui sentíamos repulsa são as mesmas que agora nos
fazem suspirar. Há uma mentira nisso, um paradoxo, e há também um pacto, uma
sabedoria que nem sei se é nossa, se é do cosmos. Sei que esta manhã rebentou
algures um foguete e já não me pareceu ruído, mas bonomia – e que, sendo assim,
ainda falta algum tempo até sentirmos saudades dos serões em frente ao lume
outra vez.
* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”
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