Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:


REGRESSO A CASA
Um diário açoriano
de JOEL NETO


A dignidade, a determinação e a elegância
com que a D. Filomena resistiu



Terra Chã, 2 de Abril
Das mães da nossa infância, as quatro ou cinco senhoras de aqui à volta a quem talvez pudéssemos chamar mães de todos, a D. Filomena era a mais definitivamente talhada para heroína romântica. Enviuvou muito cedo, nos tempos da leptospirose, e decidiu dedicar o resto da vida aos filhos. Mas nunca deixou de se arranjar ao sair de casa, e, quando atravessava os Dois Caminhos, em direcção à venda do Américo ou apenas ao contentor do lixo, o seu porte de flamingo, mesmo sexagenário, permanecia um apontamento de urbanidade numa vizinhança essencialmente rural.
– Ela dizia-me sempre: “Tens que te arranjar, mulher. Tens que te arranjar!” – contava ontem à noite a D. Lúcia, numa melancolia, vínhamos os quatro de regresso do velório, eu, ela, o Chico e a Isabel. – Mas eu dizia-lhe: “Ai, pachorra, Filomena... Credo! Para ir trabalhar?”
Costumavam ver-se lá por trás pelos quintais, nessa intimidade magnífica que só permitem os fundos de duas casas que se tangem, e, nos últimos anos, a D. Lúcia habituara-se a monitorizar o estado de saúde da D. Filomena pelos sinais.
– Eu saía para o trabalho e olhava para a verga. – Aqui chamamos verga à corda da roupa. – Se havia roupa estendida, pronto. Se não havia: ai, coitada da Filomena, que já está pior outra vez, Nosso Senhor...
Contas feitas, e salvos os períodos em que conseguiu rechaçar o inimigo para mais longe, D. Filomena lutou contra a doença quase 13 anos. Apesar disso, pessoas entravam ontem na casa mortuária e perguntavam:
– Os meus sentimentos, Raquel. Foi de repente?
– Ai, Renato... Não se estava à espera, pois não?
Diz muito, essa pergunta, sobre a dignidade, a determinação e a elegância com que a D. Filomena resistiu, recidiva atrás de recidiva. Embora nós, na verdade, já tivéssemos assistido ao modo como ela suportara a morte do marido e pusera dois filhos na universidade e mantivera a sua casa e o seu jardim impecáveis – tudo com recurso a um emprego apesar de tudo intelectualmente menos exigente do que aqueles que tinha capacidades para ocupar.
Partilhávamos o gosto por jardins e, quando comprei esta casa e decidi que, mais do que remodelá-la, haveria de plantar-lhe um jardim, foi no dela que me inspirei. Falávamos muito de plantas, os dois. Chegámos a trocar rebentos, e de vez em quando ela elogiava a minha obra, como eu elogiava a dela.
Muitas vezes eu vinha de baixo, da venda do Roberto ou de casa dos meus pais, e parava a vê-la trabalhar, a ela ou ao Renato. Cortavam relvas, podavam buganvílias, criavam estratagemas para manter os cães longe das flores. Custou-lhes muito cortar aquele cedro manso que tinham em frente à porta da sala, e que começava a levantar terras e passeios, ameaçando as fundações da casa. Mas nem por isso a D. Filomena deixou de pintar os lábios e os olhos, vestindo-se e caminhando com um estilo que a distinguia das restantes mães da nossa infância.
Talvez levemos ainda algum tempo, todos nós, até percebermos por completo a influência que o seu exemplo teve em nós.
A D. Filomena foi a enterrar esta tarde, nova ainda. Estava tanta gente no funeral que não cabia na igreja. Homens amontoavam-se cá fora, fumando ou guardando silêncio, e de vez em quando chegava uma senhora, tentava entrar e decidia ir esperar o cortejo ao cemitério. Nem consegui cumprimentar o Renato e a Raquel, filhos tão exemplares que foram ao longo destes anos.
De manhã, estivera a semear e a plantar aqui à volta, com a ajuda do Fernando. Deixámos o calistemo para o Chico, mas plantámos e semeámos um monte de outras coisas, resistindo à chuva miudinha de Abril: peónias e eresinas, anémonas e jarros de várias cores, papoilas e crisântemos, zínias e margaridas, gladíolos, columbinas, aubrietas, amores-perfeitos, asteráceas de diferentes espécies e todo o género de flores silvestres – boa parte daquilo que eu trouxera da Califórnia e da Nova Inglaterra, oferecido pela Filomena Goulart ou comprado no Home Depot, e que, embora esteja a semear tarde, ainda espero ver transformar este no melhor ano da história do meu jardim.
Lembrei-me muito da D. Filomena. Não apenas porque tantos bolbos me haviam sido presenteados por uma homónima, ou sequer porque o seu corpo jazesse um quilómetro abaixo, à espera de ser metido na terra também. Lembrar-me-ia sempre. A D. Filomena era a minha parceira de parkomania: restava entre nós uma linguagem nem sempre acessível aos demais.
Quando ontem a depuseram no caixão, a Raquel pintou-lhe os lábios e os olhos, como ela gostaria. Havia no seu rosto uma serenidade rara, coisa que se diz muitas vezes mas nem sempre é verdade. Fez-me lembrar o ar com que cantava no Coro, o seu momento de lazer e a sua introspecção. Era o rosto de uma mulher que criara os filhos sozinha, chegava ao fim da vida com a elegância de um flamingo e partia sem satisfações a prestar a quem quer que fosse.
Daria uma personagem estupenda, a D. Filomena.
Ontem à tarde, ao telefonar-me com a notícia, a minha mãe contou-me:
– Parece que a estou a ver, no dia em que a ambulância veio buscá-la. Ainda me disse adeus, coitada.
Esperavam-na cinco semanas de dor e paliativos, e já não voltaria a casa. Apesar disso, sorria e acenava. E talvez não haja melhor forma de recordar uma mulher: tenaz na morte como na vida – partindo em direcção ao seu leito final e, ainda assim, acenando e sorrindo aos vizinhos.

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* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”


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