Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:


REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO


Pedaço de tolo

Terra Chã, 30 de Março
Desde há uns meses que, por razões diversas – das quais a vaidade não é a menor, embora eu me tenha habituado a chamar-lhe “intenção de adiar o envelhecimento” –, venho acabando muitos dos meus dias aos saltos num ginásio.
Sim: nada disto soa tão romântico como passear os cães pelos pastos, de botas de cano e boina, serpenteando entre os cerrados com um bordão de araçaleiro na mão. Mas há bastante tempo já que estar no campo e na ilha deixou de constituir, para nós, um passeio de privilegiados pela província, um intervalo idílico numa existência essencialmente urbana. É vida mesmo, isto. E um ginásio, nesta fase, respondia melhor às urgências dos físicos sem deixar de se enquadrar no apertado espartilho da nossa rotina de trabalho.
De maneira que assim tenho andado, finda a jornada: arrastando-me como um cefalópode, começando a pôr um pé a seguir ao outro, pedalando e correndo já com o peito razoavelmente erguido. De início, sentia-me um pouco ridículo, vendo-me forçado a evocar gregos e renascentistas para evitar reduzir a tentativa de investimento numa terceira idade viável ao simples culto do corpo. Aqui quase toda a gente se conhece, ou se não conhece faz uma ideia, e ademais o ginásio do Luís tem uma atmosfera familiar – para um tímido, torna-se tudo mais difícil.
Mas a certa altura cheguei à conclusão de que a vida é demasiado curta para a passarmos toda em pose ou zangados com alguma coisa. Em suma, decidi estar-me nas tintas para constrangimentos inúteis, como nos últimos anos aprendi a fazer nos mais diversos âmbitos. E, portanto, torno a saltar, pego em pesos e procuro aumentar todas as semanas a velocidade na passadeira e na bicicleta. Um dia destes até dei por mim a dançar no fim de uma aula, trocando dá-cá-cincos com as raparigas que cirandavam numa ginga descontraída.
Chega a ser incrível como podemos de facto descobrir, já passados os quarenta, que ainda estamos vivos.
Entretanto, aqui há umas semanas, ao cruzar-me na televisão com o início da cerimónia dos Óscares, por que outrora perdia uma noite ao ano, ouvi os primeiros acordes da canção com que a festa abria e ergui as sobrancelhas na direcção da Catarina:
– Olha, a música do body attack...
Cantava-a Justin Timberlake, e eu não só conhecia Justin Timberlake como o respeitava: é um bom golfista. Sabia pouco era da sua música. Mas, mesmo assim, julgava que fosse, grosso modo, melhor do que aquela amostra – a faixa inconsequente com que, no ginásio, fechávamos a aula de body attack, dotada de uma letra igual à de Can’t Fight This Feeling, dos REO Speedwagon, e uma melodia que seria tão esquemática e pobre como a desta se não se desse o caso de esta, ao tempo, ser mais ou menos original.
Foi uma surpresa. Na verdade, e após dezenas de aulas de body attack, rpm, body pump, step e até uma (bastante infame) de body combat – eu a dar murros no ar ao lado da Catarina e as restantes raparigas olhando para ela, atónitas, como quem diz: “É assim que o teu marido dá murros? Se houver uma altercação de trânsito, chega-te tu à frente...” –, eu pensava verdadeiramente que a música do ginásio era música de brincar. Isto é: feita por um tipo qualquer numa cave da Nova Zelândia, com um teclado, um computador e um manual de instruções de jingles, e que quando era preciso mandava novo ficheiro .mp4 aos senhores das Les Mills a troco de quantia suficiente para sustentar o agregado familiar e de um cartão de livre-trânsito para a rede de ginásios da sua área de residência.
Afinal, não. Afinal, tudo o que eu ouvia enquanto pedalava, pegava em pesos, esticava os quadríceps e até dançava, repetindo para mim próprio: “A vida é curta, Joel, e os renascentistas cuidavam do corpo”, “A vida é curta, pá, e olha os gregos”, é mesmo a música pop de hoje. Confirmei-o desde então, em Portugal e no estrangeiro, tomando atenção à rádio e à Internet: é aquilo que a malta ouve. São canções de Adele, Justin Bieber, Lady Gaga e uma série de outros artistas, bandas e DJs cujo nome não decorei, mas têm a uni-los a circunstância de, muitas vezes, apresentarem ao microfone alguém em regime de featuring (ou feat.).
Com isto nem os gregos nem os renascentistas tiveram de lidar. A não ser que também no meu caso esteja em jogo algum tipo de chauvinismo geracional, explicação que até me daria jeito. Eu quero continuar a ir ao body attack, porque me sinto mais jovem e vigoroso ali, a dançar ao espelho com aqueles garotos e a ouvir canções tontas. Eu quero pedalar no rpm e correr na passadeira e levantar pesos, baptizando as máquinas com os nomes dos jovens instrutores e brincando ao Rocky Balboa com o Fernando, enquanto repito a cada elevação o que repetiria o treinador do Garanhão Italiano se tivesse nascido ali nas Cinco Ribeiras:
– Sem pená na vás ganhá. Sem pená na vás ganhá.
Quero, em resumo, divertir-me e sentir-me em forma, que a vida é demasiado curta para a passarmos zangados ou em pose.
Mas não me esqueço do contrato que firmámos um com o outro, eu e a Catarina, ao mudarmos de Lisboa para esta freguesia remota numa ilha distante: da nossa porta para dentro, e salvo catalisadores de memória (que são matérias de outra natureza), só música boa – só filmes bons, só livros bons, só conversas com que possamos manter um certo padrão estético, sem embrutecer.
Pensávamos, na altura, que nos defendíamos da província. Afinal, defendemo-nos do mundo.


* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”

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