Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:


REGRESSO A CASA
Um diário açoriano

de JOEL NETO

Tu usas palavras muito políticas

Terra Chã, 6 de Março
Na semana passada ligaram-me da TV: gostariam que fosse jurado do Festival da Canção. Disse de imediato que sim, numa excitação, e só depois pensei no que isso significava.
Votar foi fácil, porque havia uma canção demasiado melhor do que as outras. Mas restavam ensaios, guiões e, no dia (ontem), apenas dois minutos no ar – lembrei-me depois – para milhões de pessoas em todo o mundo.
Numa conversa de quarenta minutos, uma pessoa arranja maneira de corrigir qualquer asneira que diga. Em quinze, sempre disfarça alguma coisa. Em dois, o que está fica.
E o que poderia eu perceber de como comunicar nas variedades?
À noite, lá me sentei, na régie da delegação da RTP, a ver o espectáculo. O Nelson maquilhou-me e foi-se embora. Em todo o edifício, já não restavam mais de quatro ou cinco pessoas: o Luís, o Victor, o Rui e aquela segurança do sorriso.
Cheguei a manter a calma. Falámos das novas instalações, do futuro da TV. Falámos de quando trabalhámos juntos, naqueles programas malucos que eu fazia há doze ou treze anos, e de como, um dia, ainda voltaremos a fazê-lo.
Iam desfilando as canções e ocorriam-me as noites que passáramos lá em casa, na adolescência, a ver aquele festival, e depois dele o da Eurovisão – discutindo os temas e tecendo comentários (para meu deleite) sobre as raparigas mais bonitas. Lembrei-me da garota belga que cantava J’Aime La Vie. De Céline Dion, ganhando para a Suíça. De Mia Martini, cuja Rapsodia ainda hoje seria capaz de cantar de cor.
Lembrei-me de como chegávamos à escola, de manhã, e trauteávamos refrães em alemão, dinamarquês, até grego.
Não importava que, já então, eu não gostasse daquela música. Os Festivais, um e outro, eram instantes de comunhão. Na verdade, toda a vida eu me preparara para esse dia em que se me proporcionasse dizer:
– Canção número 4, 12 pontos.
E isso significasse alguma coisa.
Na hora, gelei. Havia um disparidade de nove segundos no monitor de continuidade. O auricular no meu ouvido tremelicava. Mas, sobretudo, vi votarem os porta-vozes anteriores, muito à vontade, e o meu coração começou a bater de tal modo que temi não chegar vivo à minha vez.
Subiam-me calores pelo pescoço e, no último momento, vi-os sentarem-se todos à minha volta. Os meus pais, a minha irmã e os meus primos. Amigos do continente e das ilhas, da América e do Brasil. Os vizinhos que iam connosco na urbana. Os meus colegas de turma, até as professoras do liceu.
Pensei imenso nas minhas professoras do liceu. Censuravam-me por ter votado mal. Lamentavam o meu ar mal enjorcado, ali sentado com aquele papel na mão. Reviravam os olhos a propósito da roupa que eu vestira.
As apresentadoras chamaram-me, “agora o júri dos Açores”, e quase não fui capaz. Parecia que nunca tinha ido à televisão. E não tinha, de certa forma. Não, pelo menos, fazer aquilo para que nos havíamos preparado a vida toda e que jamais aconteceria, porque era apenas uma brincadeira.
Penso nisto desde ontem: e se as nossas brincadeiras de infância, um dia, se tornassem realidade? Não penso nada. Penso que, agora, posso contar a tal história que começa assim: “Já vos falei do dia em que participei no Festival da Canção?”
Para o ano, quero cantar.
   
EUA, 7 de Março
Voo a trinta mil pés de altitude, atravessando a América do Massachusetts à Califórnia, e vou ao computador, banda larga ligada, a responder aos e-mails. Na verdade, só agora percebo todos aqueles empregados de lojas de electrónica a quem, no último ano e nos mais distintos países, fui importunar em busca de um rádio wi-fi com que pudesse substituir o velho Roberts: “Rádio wi-fi?! Isso é uma coisa obsoleta...”
Até a mim, que sempre me julguei actualizado, a marcha da tecnologia começa a surpreender. Como percebo, agora, a perplexidade dos nossos pais.
Milpitas, Califórnia, 9 de Março
Ontem à noite fomos a Tulare, quatro horas para cada lado, para uma sessão literária. À saída de Milpitas, olhei a silhueta de San José, ainda mal nascido dia, e deixei-me comover com toda aquela sensação de espaço, a que os ciprestes emprestavam diferentes profundidades de campo.
Atravessámos o Vale de Santa Clara e o de San Joaquin, e foi mais tocante ainda. As colinas verdejantes (sempre quis usar esta palavra), a que as chuvadas das últimas semanas só trouxeram viço. Os carvalhos, erguendo-se imponentes. As explorações agrícolas enormes, transpirando trabalho e mérito. As amendoeiras em flor, as sequóias, o carinho infinito à chegada.
Posso perceber aqueles luso-americanos que, ainda há dias, se instalaram na Fonte Faneca com um bailhinho e, ao descerem à venda do Américo, suspiravam: “Isto é que é vida...” Mas esses luso-americanos eram da Nova Inglaterra, não da Califórnia. Há algo na fertilidade que reverbera sob os nossos pés.
Agora faço uma corridinha por Milpitas, para descomprimir. Não chego a ver os veados e os perus selvagens que deram em descer a montanha para atacar os pomares. Mas os coelhos e os esquilos saltitam nas estradas menos movimentadas. Uma águia dourada passa e volta a passar. Velhos sentados em alpendres erguem-me a mão. Dois cavalos de patas brancas brincam num pasto em declive, correndo atrás um do outro.
Estou nos territórios de Steinbeck e estou como em casa. Com muita facilidade amaria uma terra assim.

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* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”
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