Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

O escritor Joel Neto encontra-se na Califórnia onde tem apresentado os seus mais recentes livros - Arquipélago e A Vida no Campo -, tendo, para o efeito, contado com a prestimosa colaboração do professor Diniz Borges, outro terceirense dos sete costados e figura grada entre a comunidade portuguesa, nomeadamente a açoriana.


REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO


Tu não és bem todo o dia, com certeza

Terra Chã, 26 de Fevereiro
Agora são os domingos.
Ainda hoje, por exemplo. Acordei com o sol atravessando os estores, e já a Catarina andava ao fundo da casa, os cães tratados e a salamandra acesa, a rádio ligada baixinho numa estação americana. Levantei-me, preguiçoso, vestimos os equipamentos e fomos correr.
Ela corre bem mais do que eu. Ao longe, devemos parecer um daqueles casais velhotes de idades desequilibradas e ânimos distintos: a mulher muito rabina, correndo de joelhos ao alto, o homem arrastando-se num pesar, como se pôr um pé à frente de outro já tivesse o seu mistério.
Felizmente, nunca deixo de guardar um resto de energia para quando passa um vizinho. Aí, encho o peito e atiro-me num sprint pimpão, fingindo vir a engonhar há que tempos só para deixar a patroa brilhar. O único problema é quando o vizinho abranda, caso em que ainda me apanha agarrado ao muro seguinte, com uma mão na traqueia e o bico aberto numa súplica.
De maneira que fomos dos Dois Caminhos à Terra do Pão, pela Canada da Francesa, e daí até à Serra da Fonte Faneca, pelas dos Folhados e do Ti Bento. Não sei que distância corremos, porque não andamos com telemóveis atados ao braço. Sei que chegámos os dois vivos e já foi bem bom.
Entretanto, devotámo-nos às tarefas do costume. A Catarina pôs-se a arejar a casa, estudando a receita de um doce e debatendo-a com a Jasmim. Eu tomei um longo banho, mais quente do que devia, e saí para a rua.
Podia levar meia hora, mas prefiro levar três. Lavo ambos os pátios. Trago lenha para cima, duas achas rachadas em ripinhas, para atear semana fora. Brinco com o Melville na relva e depois ainda o levo à passadeira na garagem, a queimar o excesso de desejo.
Há umas semanas, o malandrim deu em saltar da passadeira a meio da tirada, para ir tentar roubar biscoitos ao armário. Mas ficou uns dias sem comer nenhum e já se reeducou. Nem preciso de prendê-lo: chega ao tapete, sobe-lhe para cima, senta-se para receber o primeiro biscoito e corre o programa todo sozinho.
Podia entrar um ladrão para me roubar o corta-relva, que não se desconcentraria do segundo biscoito.
Hoje até aproveitei para dar um salto ao Guarita, a fazer umas compras de circunstância. Encontrei a vizinha Jerónima, o Gustaaf Van Manen e a Luísa Vaz de Carvalho. Parei a falar com todos eles e depois fui comprar gás à D. Ângela. O Luís estava a dormitar, pelo que até tive de esperar um pouco. Quando regressei à garagem, ainda o cão corria.
(Outro que corre mais do que eu, portanto.)
Trouxe-o para casa, mudei-lhe o penso à cauda – um fungo que não passa, começo a ficar preocupado –, voltei a medir o caroço que lhe apareceu no lombo, confirmando que está a minguar, e saí para o jardim de novo.
Os arbustinhos que plantara de estaca sob os loureiros não pegaram, pelo que decidi fazer uma estufa. Abri a caixa de plástico trazida da loja do chinês e esburaquei-lhe profusamente a tampa, com o berbequim. Depois, agarrei numas velhas taças de plástico, enchi-as de turfa recolhida sob a acácia, plantei novos rebentos e fechei-os na caixa.
Desta vez, reguei com um pouco daquele guano maravilhoso que o Neves manda de Angola e de que às vezes a Luísa me dá uma porção, muito bem acondicionado numa caixinha da Carte D’Or.
Espreguicei-me devagar e fumei um cigarro, a conferir as azáleas que só agora começam a florir. Tudo é tardio no meu jardim, o que às vezes me desconsola. Mas hoje qualquer coisa me faria feliz.
Voltei para dentro, mudei de roupa e dirigi-me ao fogão. Sou eu quem cozinha a sopa da semana, para dividir em tupperwares, e desta vez optei por uma de couve branca, abóbora-manteiga e batata doce. Ficou boa. E, como ficou boa, fui ao frigorífico, tirei pimentos e as postas de congro trazidas do Guarita e pus-me a fazer uma caldeirada também.
A Catarina saíra a passear a Jasmim, mas não se esquecera de me deixar de lado os empanques que comprara no Nildo Neves. Pus-me a reparar a torneira da banheira, que há dois dias corria em bica, e não percebi como chegar aos castelos. Liguei ao Anselmo, mas é Carnaval: nenhum canalizador cá viria antes de amanhã à tarde, e só por especial favor. Arrisquei o Duarte, que também estava a ver bailhinhos mas é um dos tipos mais bondosos que conheci, e ele fez uma pausa para me ajudar pelo telefone.
Trocámos fotografias e indicações pelo Messenger, mas, no meio da parafernália de alicates, chaves-de-fendas e latas de WD 40, o zinabre ainda levou a melhor durante bastante tempo. Depois de ceder, foi quase fácil: saí dali com apenas dois dedos negros e habilitado a reparar torneiras do tempo da Guerra em qualquer parte do mundo.
Senti uma certa realização.
Quando a Catarina voltou, trazia filhoses, que afinal decidira não arriscar fazer ela própria, porque o forno do fogão anda meio avariado. Sentámo-nos a almoçar, gulosos, e, embora já fosse quase de noite, comemos sem pressas, a salamandra atestada, os cães ouvindo jazz sobre os tapetes, a sopa e a caldeirada e as filhoses dispersas pela mesa.
Ao levantar-me, já não tive forças para abrir o Kawabata que me esperava sobre a mesinha. Nem sequer o filme que alugámos, uma tontice qualquer de que nem me lembro bem da sinopse, cheguei a concluir. Adormeci no sofá e só despertei à hora de ir para a cama.
Agora são os domingos, como de início eram os sábados. Mudámos por conveniências diversas, mas o caso não é esse. O caso é que é sempre neste dia que primeiro penso quando penso em voltar à cidade. Como iria eu poder ter domingos assim e que homem seria eu, agora, se não pudesse tê-los?
Para a semana, reparo aquele forno. A ver se o Duarte deixa o telefone ligado.


* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”

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