Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:
REGRESSO A CASA
Um diário açoriano

de JOEL NETO

Fancou-se a andar e não disse nada a ninguém

Terra Chã, 24 de Fevereiro
E, no entanto, houve um tempo em que talvez também eu tenha gostado de automóveis. Ou daquilo que cada automóvel acrescentava à minha persona.
Um contador de histórias nunca consegue viver a vida senão como uma história também.
O meu primeiro carro foi um Citroën Visa cinzento. Antes disso, apenas nutrira emoções por três: um Fiat Uno azul, o primeiro zero-quilómetros do meu pai, e em que passeávamos aos domingos a ouvir os relatos do Sporting; antes dele, um VW 1200 vermelho, em que fazíamos uma festa ao chegar aos 100 km/h na Recta; e, depois, o Fiat 127 do meu avô, também vermelho, que ainda hoje não me perdoo por ter deixado abater.
Gostei dos Fiats, do VW nem tanto. Um carocha, nos anos 80, não era um carro romântico: era um carro velho.
Ao Visa, comprei-o quando arranjei trabalho nos jornais. Escrevia na Gazeta dos Desportos e ganhava 25 contos. Não tinha dinheiro para um carro. O Tozé, bate-chapas no Seixal, sugeriu-me um Visa delapidado, que não funcionava mas se podia reparar. Paguei uma ninharia e entreguei-o ao Sr. Miguel, um biscateiro barbudo e engenhoso, bêbedo a partir do meio-dia, que lhe desmontou o motor no anexo dos meus sogros de então e lavou cada peça com gasolina.
Não ficou a sobrar nenhuma.
No dia em que pela primeira vez entrei nele e percorri a A2 em direcção a Lisboa, senti-me o dono do mundo. Apontei a Porto Salvo e fui mostrá-lo ao meu tio. Este veio lá de dentro e assobiou: “Sim, sanhor...” A certa altura, deteve-se na grelha frontal: “E isto, o que é?” Vertia óleo por todos os lados.
Estaleiro outra vez.
Vendi-o meses depois a um palhaço – “palhaço” como substantivo, um palhaço profissional mesmo –, mas ainda fiz nele uma viagem ou outra. Um dia fui em reportagem a Viseu e almocei no Cortiço. Nunca mais deixei de comer no Cortiço ao ir Viseu.
Que saudades do Cortiço.
Depois, tive uma série de carros diferentes. O Fiesta branco, comercial, foi um companheirão: levou-me a todo o lado e ainda me deu a ganhar uma fortuna em quilómetros facturados ao jornal. Devo-lhe uma parte importante dos anos em que mais me esforcei por mitigar os desequilíbrios entre o que eu era e o que um jovem de Lisboa devia ser.
A seguir, comprei um Honda Civic cinzento, de três volumes. Vestia um blazer e ia jantar fora. Depois dele, um Renault 4 GTL branco. Usava calças de ganga e ia ao cinema.
Aquela 4L salvou-me a vida. Era sábado e eu devia comparecer numa festa de casamento ao meio-dia, mas decidi na mesma ir jogar à bola com a malta a Almada. Nas pressas, já de banho tomado e fato vestido, fiz um pião violento. Foi o meu único acidente até hoje, mas o carro aguentou-se.
Endireitei o guarda-lamas à mão e cheguei quase a tempo. Apanhei uma piela monstra e dancei música brejeira a noite toda, fazendo girar a minha sogra, delirante, pela pista.
Só que a 4L era desconfortável para quem trabalhava a 25 km, e voltei ao Civic, desta vez preto e de dois volumes. Consumia imenso, porém, e mudei para um VW Polo, daqueles em carrinha, com um motor 1.9 TDI que me diziam o melhor do mundo e, afinal, foi o único (fora o do Visa) que me deu problemas. Uma avaria insanável num certo medidor de massa de ar, que ainda hoje não sei o que seja.
Quando o fui trocar por um Citroën C4 cinzento, que comprei em simultâneo com um Smart ForTwo preto-e-prata – os dois primeiros carros novos que tive –, levava o coração nas mãos. O rapaz do stand pegou-lhe e ele não se engasgou. Zarpei a toda a brida, mas durante anos, sempre que a campainha lá de casa tocava, sentia um calafrio.
Entretanto, o agregado familiar mudou, a geografia também, e vi-me com o Smart a viver em Campo de Ourique, num apartamento soalheiro de solteirão. Talvez tenha sido a minha crise de meia idade. Só que comecei a jogar golfe e o Smart não levava os tacos. Comprei um Chrysler PT Cruiser, cérise, e foi uma bela asneira.
Ainda o usei dez anos. Havia ali carisma, coisa que, olhando para trás, percebo ter procurado várias vezes. Mas comia como o diabo, para usar o jargão do consumidor-tipo, e era de assistência complexa – para mais após nos mudarmos aqui para a ilha, eu e a Catarina, e já vendido o Corsa vermelho que usávamos nas férias.
No ano passado, dispensei-o também.
Hoje tenho o carro menos memorável do mercado: um Kia branco, carrinha de novo. Comprei-o de serviço, a um preço óptimo. É económico e cheio (como é que se diz?) de extras. Quando lhe encomendo um acessório, fazem-me um desconto. E ainda tenho quatro anos de garantia, o que efectivamente me tranquiliza.
É da idade.
Nunca quis ter um BMW. Quis um jipe, mas achei-os sempre maus negócios. Mantenho razoável modéstia, coisa de que até sinto certo orgulho, e os carros brancos e vermelhos continuam em maioria. Há um padrão. Mas o Kia prova que pelo menos um elemento desse padrão desapareceu: já não procuro carisma – já não selecciono um carro para construir a persona.
De resto, repito: irrita-me o culto dos automóveis. Mas isso não me impede de achar que as histórias das nossas vidas se podem contar através dos que conduzimos. Como através dos frigoríficos, das esferográficas com que escrevemos ou das molas de roupa que, anos fora, fomos escolhendo das prateleiras do supermercado.

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* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”
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