Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:



REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO


Olha que essa bezerra é valhaca para dar a sua marrada!

Terra Chã, 11 de Fevereiro
Atravessamos o Porto Judeu, por aquela nova estrada que passa acima do Refugo, e em sentido contrário vem um casal de namorados. São jovens, muito jovens – mesmo numa terra como esta, em que se casa tão cedo como os futebolistas. Vêm quase fundidos um no outro, à moda antiga, ele com o braço por cima dela, ela com o braço por detrás dele.
E vêm a pé.
Há uma doçura nos seus olhares, uma plenitude inocente. Vemo-los de relance, a caminho do Porto Martins, mas liberta-se deles uma tal aura de ternura que jamais poderia ser-me indiferente.
Encanta-me que venham a pé. Na província, a insular como a continental, a primeira – e demasiadas vezes única – ansiedade de um jovem homem é comprar um carro para os exibir como troféus, ao carro e à namorada. Habituei-me a ver a obsessão com os automóveis, todos os tipos de obsessões com automóveis que aqui medram, como o sinal mais evidente dos níveis de subdesenvolvimento humano destas ilhas, ao mesmo tempo causa e consequência da inconsequência (na verdade, é isto) de cada vez mais vidas.
Estes dois vêm a pé, abraçados, e por um momento parece não precisarem de mais nada. Talvez o carro se lhes tenha avariado além da curva e venham caminhando com a dignidade possível, a disfarçar a vergonha. Talvez saibam simplesmente que a vida tem etapas. Talvez lhes agrade o passeio, até.
Não digo nada, nem a Catarina ao meu lado. Limito-me a olhar os dois jovens que caminham abraçados, por entre os abrigos de banksias que escondem as plantações de bananeiras, e de súbito parece-me que ainda há esperança. O carro está num quase silêncio, Tony Bennett cantando baixinho. Não tenho a certeza de que a Catarina se haja apercebido da beleza daquele quadro – daquele despojamento.
Mas, quando vou a reduzir para terceira, de modo a fazer a curva em segurança, dou-me conta de que tem a mão na minha.

Terra Chã, 12 de Fevereiro
Vemos Capitão Fantástico, neste domingo sonolento de televisão e bolo de laranja, e a certa altura não falta lá nada. Os valores do campo não estão no viver radical da natureza, no estandarte político da auto-suficiência plena ou dos poemas de Thoreau. O Homem é ao mesmo tempo produtor e produto da vida em sociedade, e até hoje não encontrei paz num só desses extremistas enlouquecidos que se retiram na floresta, determinados a atingir a superioridade moral e a vencer sozinhos a agressão (e cito) das grandes corporações.
Nunca lhes vi no olhar menos raiva, no fundo, do que naqueles que não concebem outra vida além da da cidade nem outro estado além do da depressão.
O que Capitão Fantástico propõe é um compromisso. Uma vida no campo, mas com educação e cuidados de saúde. Um bocado de terra, mas com enxadas, machados de corte e uma capoeira. Respeito pelos animais e pela natureza, mas também pelo Homem.
Em vez do moralismo e do ressentimento, a liberdade e um razoável grau de comunhão com o outro.
Naturalmente, perdeu mais prémios do que ganhou, o filme. Estamos no tempo das radicalizações, não da felicidade – e que não nos apanhem a exteriorizar alegria, essa coisa de charlatão.

Terra Chã, 15 de Fevereiro
Aproxima-se-me o aniversário e eu sei que a Catarina me vai oferecer um casaco. Preciso de um casaco. Mas o que queria, mesmo, era uma máquina de jacto de água.
Chamam-se-lhes “lavadoras de alta pressão”, e eu nem sabia. Ainda ontem estive a ver umas na Unicol, que nesta altura do ano, anunciados os primeiros calores, se transforma na minha Eurodisney (creio que já usei esta imagem). Ia comprar relva e grama, para semear nos espaços em direcção aos quais o Chico expandiu o jardim, mas foi nas máquinas de jacto de água que parei.
Entravam e saíam lavradores e agricultores domésticos – comprando sementes, botas e alviões. O senhor ao balcão servia um, perguntava: “O que é que vai ser mais?”, imprimia a factura e mandava aproximar-se o seguinte.
Ainda não estamos no tempo da bonomia, aquele tempo cálido em que as famílias descem ao canto do Berbereia, a comprar o seus plantios. Mas já há muita gente a preparar-se para a Primavera, e o que eu gostava, em vez de um casaco todo bonito, encomendado numa loja de Lisboa, era de uma máquina de jacto de água.
Com uma máquina de jacto de água, eu podia limpar regularmente os limos aos pátios. Podia lavar os musgos e os detritos de pássaro que se me entranham na fachada da casa. Podia lavar os patilhões e as palas ao carro, que a partir daqui – as manadas não tardam a viajar para as terras altas – se sujarão sempre que sairmos a dar uma volta.
É tão bela, a água que tudo lava – vê-la lavar as maiores como as mais pequenas coisas, deixando tudo ordenado e fresco.
Há anos que as cobiço, às máquinas de jacto de água, e há anos que adio o dia de comprar uma. Há–as muito caras e até bastante baratas, e com certeza já gastei dinheiro em objectos bem mais dispendiosos e muito menos úteis nestes cinco anos. Não sei o que me prendeu até aqui, mas suspeito que o facto de uma máquina de jacto de água ser uma ferramenta tão evidentemente de homem adulto.
Sou um rapaz novo ainda. Não está na altura de ter uma máquina de jacto de água. Mal posso esperar pelo meu casaco.


* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”

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