Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

REGRESSO A CASA
Um diário açoriano
de JOEL NETO

Ai que grande cambrela, homem de Deus

Terra Chã, 26 de Janeiro
A araucária que plantei no meu jardim é endémica da Nova Caledónia, lá no fundo do Pacífico, o que já traz a sua magia. Mas a história das migrações botânicas está contada, e de resto o que não falta aqui, nesta ilha onde durante tantas gerações pararam naus, galeões e brederodes, são heranças desses tempos gloriosos da Expansão – já não apenas incrustadas na paisagem, na gastronomia e nos modos de vida, mas partes constituintes delas.
Na verdade, as araucárias são hoje uma das mais imponentes marcas de Angra, rasgando os céus contra os humores dos elementos e a passagem dos séculos. Chega a ser pena que tenhamos acumulado tantos símbolos, tantos significados, que às vezes nem nos reste tempo para nos sentarmos a olhar para elas.
Portanto, não é de araucárias que falo: é da minha araucária. E, já agora, nem fui eu que a plantei: plantou-ma o sr. Morgado, um polícia que foi baleado num motim da FLA e que, depois da reforma, viria a trabalhar como motorista da Televisão.
Eu perguntei-lhe, num dia em que me conduzia ao aeroporto:
– Aquela araucária ali ao pé do estúdio costuma dar filhotes?
E dias depois recebi um telefonema informando que o sr. Morgado passara a plantar uma árvore no jardim que eu fazia nascer no quintal da casa do meu avô, comprada havia pouco.
Hei-de agradecer-lha sempre. Não foi a minha primeira árvore, mas é a mais emblemática das que plantei antes e depois dela. As araucárias nasceram para serem emblemáticas.
Às vezes ponho-me à porta da venda do Américo, num ângulo recto em relação ao número de polícia, e torno a medir o crescimento da minha araucária pelo topo da chaminé. Não é verdade que as araucárias cresçam um nó por ano, como diz o saber de pacotilha, porque a minha tem agora uns doze anos e já vai no 18º, incluindo os que aparei entretanto.
Olho para ela e sei que, salvas catástrofes naturais e distúrbios estéticos de quem depois de mim venha, sobreviverá a toda a restante flora deste jardim. As acácias têm raízes superficiais. Os liquidâmbares, os jacarandás e as olaias são frágeis. Os plátanos resistem, mas não como as araucárias.
Olho tanto do que vou cultivando e chego a comover-me com a sua efemeridade. As hortênsias que todos os anos o Chico me replanta e as beladonas que roubei na Estrada das Doze; as buganvílias que nos rodeiam de cor oito meses ao ano e o jasmim que nos perfuma o fim do Inverno; o tamarilho que o Jorge Tiago me ofereceu e até os tomates-de-capucho que ando a germinar – morrerão todos, como já vão morrendo amoreiras, maracujás e outras plantas perecíveis.
A minha araucária sobreviver-lhes-á a todos. A minha araucária sobreviver-me-á a mim. A minha araucária sobreviverá àqueles que me viram vivo e sobreviverá com certeza aos meus livros, esses com que também eu vou tentando resistir à morte, num jogo tonto com que tantos escolhemos enganar-nos porque com nenhum outro, e mesmo sabendo que nos enganamos, conseguimos enganar-nos tão bem e durante tanto tempo.
Ergue-se viçosa, a minha araucária, a caminho do cume da mata por detrás dela, e a que há-de equivaler-se um dia. É bela, mas não perfeita, como sempre devem ser as árvores e as mulheres. Pode atingir sessenta metros, e nesse dia reinará não só sobre este jardim e esta propriedade, mas sobre o Lugar dos Dois Caminhos e até, talvez – há dias em que um homem podia invadir a Hungria –, a freguesia da Terra Chã.
Tenho visto acontecer. Ali em baixo, em São Carlos, há uma que apenas com recurso a gruas o Q.B. consegue decorar pelo Natal. Em frente, outra em torno da qual foi construída uma escola.
Assim mesmo: uma escola básica e secundária, com centenas de alunos e vista para o mar, desenhada e erguida em torno de uma árvore.
Eu não vou construir nada à volta da minha araucária. Não preciso. Já lá tenho uma pequena churrasqueira, que o Cotrim me fez numas férias que aqui passámos a quatro, e quase tudo o mais é botânica – trepadeiras e flores avulsas, erva-do-capitão e uma camélia podada como arbusto.
Sei que um dia vou ter de modificar o muro que fica por detrás dela. Até a mesa de apoio, acabada pelo Tozé, tão precocemente levado deste mundo. Mas não demolirei nada. Desenharei uma concavidade na mesa e uma curva no muro, para deixar a árvore engordar e manter comigo um pouco do Cotrim e do Tozé.
Não, não existe posteridade. Isto que fazemos, escrever ou compor ou pintar – também isto o tempo vencerá. Se nos perguntarem de repente, lembramo-nos de um milhar de escritores vivos, de uma centena de escritores mortos há cinquenta anos, de uma dezena de escritores de há três ou quatro séculos. Mas, enquanto estivermos cá, eu e o Chico, continuaremos trabalhando contra o esquecimento – neste jardim e naquela araucária.
Ele diz que está a ficar velho e que um dia, mesmo contrafeito, terá de abandonar estes trabalhos. Eu não chego a desesperar. É mais velho do que eu, sim, mas conserva o vigor de um rapaz do liceu. Talvez até seja ele, um dia, a manter-nos vivos aos dois – mesmo que apenas através daquela araucária.
Talvez seja o seu filho, ou os netos que ele lhe dará.
Não sei. Um homem sem descendência pensa nestas coisas.

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* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”
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