Sorocaba comemora 150 anos do Gabinete de Leitura

DO TEXTO:
O local foi palco de muitos eventos importantes e guarda milhares de publicações e documentos históricos 

Felipe Shikama 

Servir como uma espécie de córtex cerebral da cidade que começava a provar as dores e as delícias do progresso era apenas uma das funções vislumbradas pelos 31 instituidores que assinaram a ata de fundação do Gabinete de Leitura Sorocabano em 13 de janeiro de 1867.

Além de funcionar como essa parte do cérebro responsável pelo armazenamento da memória coletiva da cidade a longo prazo, o grupo de voluntários liderado pelo engenheiro Luís Matheus Maylasky tinha outras pretensões que hoje, exatos 150 anos depois, se mostram verdadeiras e vivas.

"O Gabinete de Leitura foi criado com a proposta de integrar o povo de Sorocaba. Aliás, a entidade nasceu graças à integração de alemães, húngaros e sorocabanos", pontua o atual presidente Silvio César de Góes Menino. Segundo ele, a ideia de agregar nativos e imigrantes europeus foi encabeçada por Maylasky, por meio da fundação de um clube de leitura e difusão de ideias a fim de oferecer entretenimento e incentivar a sociabilidade. Menino detalha que Maylasky se empenhou para que os alemães, então integrantes do extinto Clube Germânia, se somassem aos brasileiros propondo, inclusive, a indistinção de nacionalidade entre seus associados. "O gabinete nasceu da integração da comunidade e continua cumprindo esse papel até hoje", comemora.

Para celebrar o sesquicentenário da entidade, será realizada hoje, às 20h, no próprio Gabinete de Leitura, uma solenidade com palestra do professor e escritor Aldo Vannucchi e homenagem aos familiares dos ex-dirigentes que ajudaram a construir a edificação da sede atual, localizada na praça Coronel Fernando Prestes, nº 21, no Centro. A entrada é gratuita e aberta a todos os interessados.

Instituição cultural mais antiga de Sorocaba em atividade, o Gabinete de Leitura Sorocabano é um dos três do estado de São Paulo remanescentes da estrutura do Império -- precursoras das bibliotecas municipais e precedente às "políticas culturais do Estado" --, ao lado de Jundiaí e Rio Claro, conforme demonstra a doutora em História pela USP Ana Luiza Martins, autora do livro Gabinetes de Leituras: cidades, livros e leituras na província paulista, lançado em 2015 pela Editora da USP (Edusp).

Na obra, resultado de uma profunda pesquisa, a autora relata que os gabinetes de leitura na província de São Paulo viveram sua efervescência na segunda metade do século 19, chegando a um total de dezessete, especialmente em cidades marcadas pela prosperidade, situadas ao longo das principais ferrovias -- como no caso de Sorocaba, com a Estrada de Ferro Sorocabana, fundada pelo próprio Maylasky, que em 1873 transmitira seu cargo de presidente do Gabinete ao advogado, jornalista e professor Ubaldino do Amaral. "Desde o início, o Gabinete preserva a história, incentiva a leitura e promove o entrosamento social entre os associados", comenta Góes Menino, citando que atualmente a instituição possui 320 sócios ativos. Além de acesso a jornais atuais e antigos, o local é equipado com um imponente auditório e oferece computadores conectados à internet. A mensalidade custa R$ 29.

Gabinete de Leitura é fonte de pesquisa 

Dentre seus mais de 50 mil itens catalogados, entre jornais, livros, documentos históricos, fotografias e até papiro, o acervo do Gabinete de Leitura Sorocabano guarda tesouros que, na avaliação do jornalista e historiador Sérgio Coelho de Oliveira, ainda não foram completamente desbravados pelos pesquisadores da região. 

Autor de livros que investigam em profundidade episódios da história de Sorocaba, desde sua fundação, com Baltazar Fernandes - culpado ou inocente? (2014) até o advento das colonizações espanhola e japonesa, relatados em Espanhóis (2002) e Arigatô (2012) respectivamente, Sérgio Coelho afirma que o material "mais rico e acessível" para pesquisas históricas da região está sob a égide do Gabinete de Leitura Sorocabano e pode ser consultado por todos interessados que queiram se associar. "Toda vez que vou iniciar um projeto novo, o meu ponto de partida é lá no Gabinete", revela, citando que entre as pérolas mais valiosas do acervo -- ao menos para os historiadores -- estão escrituras públicas e edições originais jornais do século 19 como os extintos Folha de Sorocaba, 15 de Novembro, Ypanema e Correio de Sorocaba bem como a coleção completa do Cruzeiro do Sul, desde a primeira edição publicada em 12 de junho de 1903. 

Além de disposição para passar boa parte do tempo nas mezorras disponibilizadas aos associados examinando jornais antigos em busca de fatos históricos, Oliveira assinala que as visitas ao Gabinete de Leitura são enriquecidas com a troca de ideias com outras pessoas, incluindo colegas pesquisadores. "Essa troca de ideias é muito boa e acho até que pode ser maior, porque ainda falta os pesquisadores mais novos descobrirem esse fonte. De qualquer forma, o Gabinete de Leitura é uma instituição cultural viva", defende. 

De uma dessas "trocas de ideias", como as defendidas por Sérgio Coelho, nasceu o livro A história de Julieta Chaves - A "santinha" de Sorocaba, escrito em parceria entre o professor e historiador Carlos Carvalho Cavalheiro e a artista plástica Flávia Aguilera. De certa forma, a semente da obra lançada em agosto do ano passado foi plantada no balcão do Gabinete de Leitura. Cavalheiro relata que desde começou a frequentar o Gabinete para pesquisar materiais que serviram de base dos livros Scenas da escravidão (2006) e Memória operária (2010), aproveitava para colecionar transcrições de reportagens e artigos relacionados à menina Julieta Chaves, que foi brutalmente assassinada em 1899 aos 7 anos de idade e ficou popularmente conhecida como a "santinha de Sorocaba". 

Também intrigada pela assombrosa história que ouvia falar desde a infância, Flávia recorreu ao Gabinete de Leitura também em busca de materiais sobre o caso. Lá, então, foi informada por uma funcionária de que Cavalheiro desenvolvia um projeto semelhante e, decidiu, então, conhecer o pesquisador. "O Gabinete foi responsável por esse encontro porque tanto eu como ela tínhamos a percepção de que a instituição é a guardiã das raridades da nossa história. O que a gente fez foi juntar o cada um possuía", comenta o historiador. 

Ganhos para associados vão além da Cultura 

Engana-se quem pensa que o Gabinete de Leitura Sorocabano é um espaço voltado apenas para pesquisadores e acadêmicos. Como almejava Maylasky e os demais instituidores, a instituição também continua desempenhando um papel de clube social, promovendo diariamente o entretenimento e incentivando a sociabilidade de seus frequentadores. 

É o caso do ferroviário aposentado Hélio Pereira dos Reis, de 89 anos, que é associado do Gabinete de Leitura desde 1945. Ele relata que começou a visitar o local para ter acesso aos jornais de circulação nacional após o "footing" que acontecia nos finais de tarde no Largo da Matriz, hoje denominado praça Coronel Fernando Prestes. "A gente precisa estar bem informado", considera Reis, citando que além do acesso aos jornais, até hoje faz questão de frequentar a entidade diariamente, sempre aos finais de tarde, para tomar café e rever velhos amigos. "Isso aqui é o meu passatempo", define. 

O ex-ferroviário guarda na memória inúmeras histórias vivenciadas no Gabinete, mas nenhuma lembrança se mostra mais vívida do que a tarde em que conheceu a jovem professora Teresinha, com quem se casou, teve cinco filhos e vive junto há 67 anos. "O pai dela era sócio [do Gabinete]. A gente se encontrou pela primeira vez aqui e, por coincidência, a família dela, assim como a minha, era de Porangaba", recorda. 

Pelo menos três vezes por semana o vendedor e fotógrafo Reginaldo Antonio Santos, de 44 anos, encerra o expediente de trabalho e segue para o Gabinete de Leitura. Ele comenta que adquiriu o hábito de ler jornais e revistas ainda criança, por influência de um tio, ex-ferroviário, falecido em 1986. "Também gosto de pesquisar fotos antigas e o conteúdo do acervo daqui é único", destaca. 

Funcionária do Gabinete de Leitura há 30 anos, Nilcéia Alves garante que sua atividade é tão prazerosa que jamais pensou em aposentadoria. "Para mim, os funcionários e os associados são como uma família", afirma. A auxiliar administrativa lembra que na década de 1980, o local costumava ficar lotado especialmente nas noites de domingos, logo após o término das missas da Catedral Metropolitana. "Tinha gente que vinha para assistir televisão ou conversar. Era um ponto de encontro, já que existia shopping e nem internet naquela época", complementa. 

Dentre as principais itens do acervo, Nilcéia destaca cartas de alforria de escravos da região, edições de luxo folheadas a ouro e até mesmo a assinatura de Dom Pedro II no livro de visitantes do gabinete datada de 1875. Segundo ela, ao longo de seus 150 anos de existência, o local também já recebeu a presença de outras figuras ilustres como o abolicionista José Bonifácio e o poeta Guilherme de Almeida. 

O atual presidente Silvio Góes Menino, que encerra sua gestão no biênio 2015-2016 no próximo dia 28, cita que a ampliação do prédio, com a construção de um novo pavimento superior e a digitalização total do acervo serão as prioridades das próximas diretorias, com intuito de manter a entidade "viva e ativa para nos próximos 150 anos". "O maior desafio é harmonizar a tecnologia que temos hoje com toda a história que a gente guarda", conclui.


O local foi palco de muitos eventos importantes e guarda milhares de publicações e documentos históricos 

Os associados têm acesso a amplos locais de leitura e publicações de jornais,  revistas e livros 

Nilcéia Alves trabalha no gabinete há 30 anos 

O atual presidente, Silvio Góes Menino

Hélio Pereira é associado desde 1945 

Reginaldo Antonio dos Santos vai ao local três vezes por semana 

Fotos:ALDO V. SILVA

In:http://www.jornalcruzeiro.com.br


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