Os homens de poucas palavras são os melhores

DO TEXTO:





Por: Daniel Nonohay*

Para você, leitor atento, não é surpresa que nosso herói se chame Odorico. Tampouco que ele seja um papagaio. Não tenha a pretensão, contudo, de reduzi-lo apenas a isso. Odorico é um papagaio-cinzento. Suas penas não possuem cor. Há, claro, uma pequena e ridícula cauda vermelha berrante, que ele sempre procura ocultar, constrangido.

Cinza não é cor, mas uma simples indefinição entre luz e trevas, como diz o Seu Dono para as visitas que tenta impressionar com o incomum animal de estimação. Uma mera hesitação entre extremos.

Desde sempre, Odorico acostumou-se a ouvir: Olha o papagaio! Mas é cinza! O que ele tem? Não tem nada, diria se pudesse. Além de cinza, Odorico é mudo. Está ali, confinado e incompleto. Sabe que todos, menos Seu Dono, esperavam que fosse colorido, ao menos verde, e que falasse. Por toda a sua vida, acostumou-se a ser objeto de arroubos iniciais de curiosidade, por sua ausência de cor, e de imediato desinteresse, por sua quietude. Que pássaro sem graça, tinha dito uma das primeiras crianças que conheceu. Não entendia, na época, por que o achavam assim.

A vida o pintara de cinza (com rabinho vermelho) e não lhe dera o dom da palavra. Isto certamente influiu para o desenvolvimento de certo mau humor, que, em bons dias, derivava para um humor negro. Pena que não o podia compartilhar com ninguém.

Certa feita, uma velha senhora aproveitou-se da ausência do Seu Dono, agarrou-o na gaiola e passou-lhe um dedo babado na cabeça, para ver se era pintado. Ser discriminado, tudo bem, já estava acostumado àquela altura, mas baba branca escorrendo pelos olhos, isto era demais. Aferrou-se ao dedo com toda a força do seu bico, que sabia não ser pouca (uma das consequências de fazer tudo com a boca). A velha gritou, derrubou a gaiola, e, quando Seu Dono retornou aturdido, passou a vociferar que ele tinha um animal selvagem dentro de casa. Saiu profundamente ofendida. Odorico ficou lá, cinza, calado e babado, com o coração batendo rápido por entre sementes de girassol espalhadas e uma honra resgatada.

Seu Dono era um homem pequeno e afável, que mantinha a porta da gaiola aberta, quando estavam sozinhos. A casa estava sempre lotada de mulheres, que se vestiam em trajes mínimos, mesmo no frio. Homens vinham em levas, principalmente à noite, quando havia música e bebida. Conhecia os frequentadores assíduos, inclusive o Jaime, com quem mantinha longos monólogos ao final da noite. Certa vez, ele lhe disse, com voz mole, calça entreaberta e um copo inclinado na mão:

– Papagaio… Ainda bem que tu não fala.

*Daniel Nonohay é natural de Porto Alegre. É casado e pai de duas filhas. Juiz do trabalho, escreveu o seu primeiro romance à mão, em dois cadernos pautados, quando tinha 17 anos. É autor de artigos técnicos, na área do Direito, e políticos que foram publicados em livros, jornais e sites. Organizou livros de coletâneas. É colorado. Atuou como professor e é pós-graduado em Direito do Trabalho, Direito Processual do Trabalho e Direito Previdenciário. Foi Presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho do Rio Grande do Sul. Atualmente, aproveita cada segundo livre para escrever, a sua grande paixão (depois, é claro, das “suas mulheres”). Mais informações: http://www.danielnonohay.com.br/

POSTS RELACIONADOS:
Enviar um comentário

Comentários