Há uma voz holandesa a entoar estrofes do cante alentejano

DO TEXTO:

Há uma década que está “radicado” metade do ano em Beja, e confessa a surpresa que ainda sente quando, perante situações de pressão, os alentejanos o aconselham a ter calma.

Quem esperaria ver um cidadão holandês, sexagenário, professor universitário numa universidade de Hamburgo, doutor em economia, associar os seus dotes vocais aos 24 elementos do Grupo Coral Cantadores do Desassossego de Beja? Há ano e meio que Jos Van Kesteren prova que tal é possível, participando em espectáculos ao vivo de norte a sul do país.

“A pronúncia não é problema quando canto modas do Alentejo”, garante o cidadão holandês ao PÚBLICO. “Só sei que é português e depois vem a tradução”, refere, com evidentes dificuldades em falar a língua lusa. Os elementos do grupo “são muito abertos e amigos, falam bem o inglês, o que facilita” o diálogo no decorrer dos ensaios e durante a “petisqueira” que se segue.

E quando a pressão se acentua, Jos Kesteren não se sente desamparado. É que, ao fim destes anos, o que ainda o surpreende nos alentejanos é o constante apelo à calma para quem não tem paciência. “É uma novidade para mim”, garante.

Tomou contacto com o Alentejo através de um laço familiar: um dos seus filhos casou com uma moça alentejana. “O Alentejo é uma região única”, assegura, para realçar “o convívio, a cultura, a paisagem, as gentes”, particularidades que o impeliram a alugar um pequeno apartamento com terraço para passar o Inverno, a pouco mais de uma centena de metros da torre de menagem do castelo de Beja. O problema está nas dificuldades em superar o frio. “Custa mais suportar cinco graus positivos em Beja que 10 graus negativos na Holanda”, garante. E dá o seu próprio exemplo: “O apartamento onde vivo é uma arca congeladora”. E o Verão? “Suporta-se”, reage com um encolher de ombros, frisando não entender como é que os portugueses aguentam viver em casas sem isolamento térmico, gastando energia em sistemas de ar condicionado ou caloríficos que tornam os encargos com o consumo “proibitivos”. Mesmo assim, há 10 anos que não prescinde de passar temporadas em Beja, dependentes sempre da docência que exerce numa universidade alemã e dos trabalhos académicos.

Chegou ao cante através do interesse que lhe despertou a sua classificação como património imaterial da humanidade da UNESCO. E foi através de Jorge Benvinda, um dos elementos da banda de Beja Virgem Suta, que começou a frequentar a Galeria do Desassossego, espaço criado pelo cantor para a realização de eventos culturais como música e poesia, com destaque para o cante, no centro histórico de Beja, junto à taberna do Alhinho.

Em 2014, este era o local onde, ao final da tarde, se reuniam os amigos do cante. Boa parte deles já tinha participado noutros grupos corais, e as modas surgiam uma atrás das outras. Estimulados pela revitalização do cantar alentejano, após a decisão da UNESCO, constituiu-se um novo grupo que adoptou o nome do espaço dos ensaios: “Cantares do Desassossego”. E foi neste ambiente de convívio entre modas alentejanas e as petisqueiras que Jos passou a ser uma presença constante e um observador atento do que para si era uma forma nova de canto coral.

“Um dia estávamos cantando e demos por ele, encostado ao balcão, de telemóvel, gravando as nossas modas”, conta Francisco Torrão, coordenador dos “desassossegados”. A barreira linguística não foi problema porque “o canto, seja ele em orfeões ou ópera, tem uma linguagem universal”, observa.

O entusiasmo que revelou pela força que as vozes imprimiam a temas cujo sentido ele pouco a pouco foi conhecendo, depressa justificou a sua integração no grupo de cantadores, passando a ter uma participação activa nos ensaios às quintas-feiras, e nos subsequentes petiscos, no espaço que passou a ser designado Casa do Cante.

“Era evidente o seu interesse em aprender as nossas modas”, recorda Torrão. Para o ajudar na interpretação dos temas, o grupo fez a gravação de um mini reportório “e ele decorou aquilo tudo sem dificuldade”. Nunca disse que queria desistir. E lá continua. O facto de ter experiência de coros de igreja na Holanda “ajudou bastante”, admite Jos Kesteren. Mas em Beja, ao contrário do que estava habituado, a rapaziada do cante “não precisa de maestro”, pormenor que para si foi uma surpresa (mais uma).

A sua participação não se circunscreve aos ensaios. “Temos tantos convites que somos forçados a seleccionar os locais de actuação, no norte do país, em Lisboa e no Baixo Alentejo”, explica, já com o orgulho de cantador de modas alentejanas enraizado.

Cantadores do Desassossego: um grupo multifacetado

Francisco Torrão, 70 anos de idade, é presidente da Confraria do Cante Alentejano e autor de modas. Assume-se como defensor do cancioneiro popular alentejano dos finais do século XIX e princípios do século XX, indo ao encontro do que foi proposto na candidatura a Património Imaterial na UNESCO. “Tentamos cumprir com o documento apresentado e estamos a contribuir para o salvamento do património dos nossos pais e avós, mas não nos opomos à inovação, cantando modas recentes desde que obedeçam aos parâmetros”, acentua.

Torrão tem outra faceta que o destaca no cante. É criador de grupos corais como o “Cantares do Desassossego”, formado, essencialmente, por elementos que já participaram em outros grupos corais “ou até frequentam outras áreas da música, como o rock.”

Caracteriza o Grupo Cantadores do Desassossego, de “multifacetado”. Na sua composição participam dois polícias, um militar da Força Aérea e um angolano. A diversidade social é enriquecedora mas torna-se muito difícil conciliar a presença de todos quando, parte deles, está subordinado a horários de escala que se estendem por sábados e domingos. Outros trabalham em lagares de azeite e, nesta altura do ano, a tarefa decorre 24 sobre 24 horas nos sete dias da semana.

Acresce ainda que “a cidade de Beja sempre foi um bocado incaracterística em relação ao cante. “Os grupos duram apenas quatro, cinco ou seis anos no máximo.” O grupo Cantares do Desassossego foi formado há dois anos e meio. “Vamos ver se nos aguentamos” como acontece aos de Aljustrel, criado em 1926, Cuba, formado em 1933, ou em Serpa, nascido em 1929, salienta o presidente da Confraria do Cante.

Não é por acaso que a maioria dos elementos que cantam no “Desassossego” nasceu nos concelhos vizinhos, embora estejam radicados em Beja. “Temos 26 elementos mas o ideal está entre os 18 e os 20 cantadores”, acrescenta. Já as idades oscilam entre os 21 e os 79 anos, realça Francisco Torrão.
Depois da classificação atribuída pela UNESCO ao cante, houve um crescimento de entusiasmo e foram constituídos muitos grupos de jovens, de homens e mulheres. “Mas temos de ter cuidado”, adverte Torrão, referindo que a “quantidade não significa forçosamente qualidade.”

O presidente da Confraria do Cante critica os arranjos que artistas a solo ou grupos musicais com quatro ou cinco elementos, introduzem nas modas. E dá o exemplo do tema cantado por Vitorino “Menina que estás à janela”: “É uma moda que muito poucos conhecem na composição autêntica” cantada por um grupo coral, sublinha.

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