Do escritor Joel Nato

DO TEXTO:

Como tem sido habitual nos últimos tempos, Joel Neto, que fixou residência na sua freguesia da Terra Chã, ilha Terceira, Açores, passa a quadra natalícia com a família da sua esposa. Mas sempre com o pensamento no que tem lá pela Terra Chã e as mudanças que estão ou já foram operadas, sobretudo a nova localização do curral do porco. Afinal, o ajudante Neto, pai, aposentado da PSP, sabe o que faz e, claro, do agrado do filho. Por seu turno, a D.Eva, a mãe, aguarda que o casal se decida em dar-lhe um neto (aqui não sei a preferência do sexo). Começo a pensar e vou mesmo ser atrevido: Ò Joel está na hora.



REGRESSO A CASA

Um diário açoriano

de JOEL NETO

Logo de manhã e já estás com a boca num monte?

Lisboa, 26 de Dezembro
Vagueio pelo Chiado e detenho-me nos rostos que passam. São muitos, porque numa grande cidade o Natal é antes e depois do dia 25: até 24 compram-se os presentes, a partir de 26 trocam-se aqueles de que não se gostaram e aproveitam-se as primeiras promoções.
Parece estar de volta uma alegria de que quase me havia esquecido. Seja como for, o verbo da ordem é comprar, e eu fico contente por poder usufruir desse vórtice em momentos concretos do ano e manter-me a salvo dele nos restantes. Por hoje, também eu compro, e o facto é que sinto menos culpa disso do que antes.
Na verdade, passeio-me por Lisboa, de mãos nos bolsos entre as lojas chiques e a classe média excitada, e penso sobretudo na minha pocilga, em que o Chico ficou a empreender. Um homem do campo traz sempre consigo os mil trabalhos em curso. E, limpo e ordenado o fundo do jardim, por esta altura já com o dobro do tamanho que tinha quando há quatro anos e meio nos fomos instalar na geografia da minha infância, chegou a altura de atacar o curral de porco.
Já ninguém cria porcos no quintal. Nem sequer é legal fazê-lo: uma lei qualquer impôs uma distância de duzentos metros – creio que são duzentos, os vizinhos que encontro na venda nem sempre estão de acordo quanto ao número – entre os currais e as casas de habitação. E, de qualquer modo, aquele curral em particular estava condenado: preciso de estender um pouco a zona do pomar e, além disso, continuo sem um acesso ao cerradinho onde plantei o dragoeiro, os cafezeiros e aquelas duas novas plantas que a Isabel e a Laura nos trouxeram de São Jorge.
O problema é que foi o meu pai quem reconstruiu aquele curral, com isso demonstrando ao futuro sogro ser merecedor da mão da sua única filha. Tinha acabado de chegar de França, abandonando os autocarros que conduzia no aeroporto de Orly em busca da rapariga na fotografia e das promessas que haviam trocado nas dezenas de cartas que, em poucos meses, enviaram um ao outro. Aquele curral de porco, com o chão em terra batida e a vedação rudimentar que então o circunscrevia, pareceu-lhe a melhor maneira de fingir que ocupava o tempo, quando de facto procurava sobretudo provar da sua validade como marido e como genro.
Em poucos dias, mudou tudo. Começou por conter noutro canto do quintal o bicho em engorda, que se criava com lavagens domésticas, recolhidas num balde preto conservado ao lado do caixote do lixo. No lugar da vedação mais débil, ergueu diligentemente um muro com blocos de quinze. Ao muro principal, com a sua belíssima embocadura em pedra, conservou-o intacto, sob o musgo de diferentes tonalidades. Ao fundo, escavou um espaço para construir um abrigo para o suíno, coberto com telha regional, e o chão foi pavimentado com uma camada tão espessa de cimento que agora, quase quarenta e cinco anos depois, o Chico passou dois dias a brandir contra ele a vara de ferro e o marrão, as mãos já meio em sangue, sem conseguir arrancá-lo por completo.
Até o portão, construído nessa madeira que os japoneses nos ofereceram e a que damos o nome de criptoméria porque ainda não encontrámos um tom para chamar-lhe simplesmente milagre, resiste até hoje, abrindo-se com as ventanias mais violentas, mas acabando sempre por acomodar-se de regresso ao seu lugar.
Não, aquela pocilga não podia ser mexida com leviandade, nem eu poderia nunca ter começado por ela as obras no jardim. Ela tem uma história, e é uma história de amor.
Este Inverno, e concluído quase tudo o resto, abordámo-lo finalmente. Conservámos a pia esculpida, sob a qual descobrimos um corpulento anel de basalto e na qual, acrescentada uma drenagem em bagacina e suficientes furos de escoamento, semeámos salsa e coentros. O muro principal manter-se-á, mais uma vez, com os tomates-de-capucho que entretanto plantámos na embocadura, e de que viemos comendo todo o Outono. No espaço em que um dia o meu pai escavou um dormitório, construiremos um armário de jardim, rematado com telha regional e criptoméria também. O muro do lado de dentro, por onde se acederá ao dragoeiro – e daí ao castanheiro, aos araçaleiros e ao cerrado grande –, será cortado pela metade, à face do patamar superior.
Muni-lo-emos de umas escadas.
Vai ficar bonito, porque tudo o que o Chico faz fica bonito e porque tudo naquela casa, como na nossa vida rural a que já só chamamos vida, continua a ser memória – um diálogo entre o que foi, o que podia ter sido e o que talvez ainda venha a ser. E também porque eu nunca me meteria no caminho do legado dos meus avós, e menos ainda no de uma bela história de amor.
Mal posso esperar por regressar à ilha e conferir os avanços do Chico.
Sim, vejo sorrisos com abundância, esta tarde, passeando pelo Chiado. Vejo serenidade, uma boa dose de desejo, ou talvez sobretudo nova vertigem de consumo, com resultados não muito diferentes da anterior.
Vejo seguramente alegria, até felicidade. Mas ainda não vejo um história de amor, e esse mistério, em vez de lhe acrescentar o encanto dos mistérios, subtrai-lhe o da incerteza.


http://www.facebook.com/neto.joel
http://www.joelneto.com/
* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias

PS - A canção indicada pelo próprio escritor Joel Neto.

Vincent Delerm - Chãtenay MalabrY


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