"O catolicismo foi crucial para manter uma presença portuguesa na Ásia"

DO TEXTO:
Liam Neeson interpreta português Cristóvão Ferreira

Liam Brockey, professor na Universidade do Michigan e especialista na presença dos missionários na Ásia fala dos jesuítas no Japão dos séculos XVI e XVII, tema do novo filme de Martin Scorsese, Silêncio, que se estreia amanhã nos Estados Unidos e chegará aos cinemas portugueses a 19 de janeiro. Brockey, fluente em português, é membro da Academia Portuguesa da História

Até que ponto este Silêncio é historicamente fidedigno?

O filme Silêncio é baseado num livro com o mesmo nome que foi publicado nos anos 1960. O livro em si tomou liberdades consideráveis com a história do cristianismo no Japão, especialmente com as figuras históricas verdadeiras que apresenta como contemporâneas. Por isso, há três coisas em causa no filme: o livro de Shusaku Endo, a visão de Martin Scorsese e os acontecimentos históricos que inspiraram ambos. Do meu ponto de vista, o filme mostra uma visão muito interessante de uma série de acontecimentos históricos ficcionados. Por outras palavras, dá uma interpretação do que terá sido ser missionário no Japão no século XVII, do que a vida religiosa e preocupações espirituais do jesuítas e dos cristãos japoneses eram durante a perseguição brutal que sofreram, e dos aspetos da cultura católica dos japoneses e portugueses na altura.

Como foi a sua colaboração, enquanto perito em missionação portuguesa, com Scorsese?

Trabalho com a empresa de produção de Scorsese há três anos, dando consultadoria para os guiões primeiro e depois sobre adereços, guarda-roupa e outro material. A investigadora principal da empresa (e uma das produtoras), Marianne Bower, foi a principal intermediária. Gostei muito de conversar com ela e com o outro principal consultar americano, o professor Jurgis Elisonas, acerca dos pormenores históricos que aparecem no filme. Falei pessoalmente com o senhor Scorsese em duas ocasiões, e gostei muito da sua vontade de incorporar tantos pormenores históricos corretos quanto possível.

Liam Brockey

A influência portuguesa no Japão dos séculos XVI e XVII foi muito importante?

Não há dúvidas de que a presença dos portugueses nos séculos XVI e XVII no Japão foi importante para o Japão, para a Europa, e com certeza para a emergência do mundo interconectado que começou a aparecer na altura. O "impacto", no entanto, deve ser visto de forma relativa: o Japão tinha uma grande população espalhada por vasto território e foram poucos os portugueses que foram ao Japão. Mas, nas elites e em certas regiões, os mercadores e os missionários portugueses eram com certeza reconhecidos. E o facto de o serem diz muito sobre o seu impacto.

Cristóvão Ferreira, que é interpretado por Liam Neeson, foi uma exceção em termos de martírio?

O período das perseguições começou em 1597 e durou quase meio século. Nas primeiras três décadas havia muitos, muitos apóstatas, especialmente entre laicos e mulheres. Até havia companheiros da missão jesuíta que apostataram sob tortura ou sob ameaça de execução. No que Ferreira foi diferente foi entre os padres europeus. Até apostatar em outubro de 1633, nenhum europeu o tinha feito. Após a sua queda, no entanto, uma mão-cheia de outros padres europeus iriam apostatar, como mostra Silêncio.

Os padres jesuítas eram os que tinham a melhor abordagem perante as diferenças culturais do Oriente?

Essa noção tem sido um dos lugares-comuns na história das missões no Japão. A ideia, no entanto, é polémica, uma vez que se baseia nos estereótipos dos europeus. Nesta história, os principais protagonistas são italianos - como Alessandro Valignano no Japão, Matteo Ricci na China, e Roberto Nobili na Índia - e os seus adversários são portugueses ou castelhanos. Os historiadores na primeira parte do século XX - sobre cujos trabalhos Endo se baseou para o seu livro - insistiram que os jesuítas italianos eram responsáveis por adaptar a sua visão cultural às normas asiáticas. O contraste, pela perspetiva destes historiadores, foi com os conquistadores espanhóis e portugueses, que comparavam explicitamente com os missionários portugueses e espanhóis, quer fossem jesuítas, franciscanos, agostinhos ou dominicanos. Académicos na geração passada revisitaram todos estes clichés, notando que havia muitos jesuítas portugueses que seguiam as ideias dos seus irmãos italianos, e que muitos italianos queriam conquistar a Ásia Oriental como as forças imperiais tinham feito nas Américas e na costa da Índia. Os jesuítas, no entanto, foram os primeiros a perceber que tinham de fazer algum tipo de acomodação cultural ao Japão, China e Sudeste Asiático, uma vez que não podiam contar com os exércitos coloniais portugueses para os apoiar.

Como descreve a recetividade ao cristianismo no Japão?

Aqui devemos considerar o que eu disse do "impacto". Não há dúvidas de que havia alguns convertidos, especialmente em meados do século XVI, que se converteram por convicção religiosa. Mas outros fizeram-no por vantagem pessoal - social, financeira ou outra - e por vezes usavam o seu estatuto (uma vez que alguns deles eram senhores locais no Japão Ocidental) para forçar outros a converter-se. O que vemos neste caso, como noutros territórios em todo o mundo, é que com o tempo a religião torna-se um "assunto de família". Isto é, torna-se parte da identidade pessoal e passa de geração em geração. É importante recordar que os cristãos rurais que aparecem em Silêncio não eram convertidos recentes, mas descendentes de convertidos. O seu cristianismo, como o dos aldeões do Portugal rural, era a religião há várias gerações, não algo que um missionário lhes apresentou individualmente. No entanto, o japonês que permaneceu cristão após muitos anos de perseguição vivia nas franjas extremas da sociedade japonesa, em vales montanhosos distantes e ilhas. A sua forma de cristianismo, ao contrário da da Europa rural, não era um reflexo distante do cristianismo urbano no Japão. Que já fora extinto na altura que Silêncio retrata.

Um dos seus primeiros livros foi sobre André Palmeiro, um jesuíta português na China do século XVII. Encontrou nos jesuítas uma abundância de heróis?

No meu trabalho sobre André Palmeiro, tal como nos meus estudos anteriores sobre os missionários jesuítas na China, não procurei heróis. Na realidade, como historiador profissional , estaria a trair a confiança dos meus leitores se escrevesse hagiografias. Estou mais interessado em analisar como é que esses indivíduos que viveram há 400 anos lidaram com os problemas das viagens, da tradução, da convicção religiosa, do poder (religioso, político, económico). Como alguém que tem viajado intensivamente, estou familiarizado com a sensação de estar perdido em ambientes extremamente estranhos. Mas também estou familiarizado com a sensação de encontrar ambientes acolhedores em locais estranhos. Essas são emoções que os nossos predecessores nas viagens também sentiram, e escreveram sobre isso em documentos que ainda hoje podemos ler. Para mim, logo, eles não são heróis mas sim humanos. São convincentes para mim pelas suas histórias como indivíduos, não como modelos de virtude - o que muitos deles não eram.

A língua portuguesa quase não existe hoje na Ásia, exceto em Timor-Leste e entre pessoas mais velhas em Goa e em Macau, mas existem milhões de apelidos portugueses, sobretudo na Índia. O catolicismo foi o maior legado da presença portuguesa na Ásia?

Não há dúvida de que o catolicismo - precisamente por ter uma cultura adaptável - foi crucial para manter uma presença portuguesa na Ásia. Na realidade, não deveria surpreender que seja tão difícil dissociar uma do outro - a cultura portuguesa do catolicismo. Mas, como sublinha, a língua desapareceu gradualmente enquanto a religião não. Esta situação é um puzzle que continua a atrair a atenção dos académicos e os descendentes dos portugueses na Ásia (e noutros pontos).

Shusaku Endo era um cristão japonês. Este filme, baseado no seu livro, é de certa forma uma prova de fé?

Não estou certo de que possamos chamar-lhe uma "prova de fé" - é muito claramente uma meditação sobre a fé que envolve dúvida. Não devemos esquecer, contudo, que o livro foi escrito depois dos ataques nucleares ao Japão. Ainda por cima, um desses ataques foi contra a cidade que tinha sido o centro do cristianismo no Japão na segunda metade do século XVI e primeira metade do século XVII e que tinha reconquistado esse estatuto como centro cristão no final do século XIX. Ser um japonês católico não era uma escolha fácil no início do século XX, quando Endo viveu, especialmente durante a subida da maré do nacionalismo que acompanhou o período pré-guerra. E então ver o coração do cristianismo ser obliterado por uma nação maioritariamente cristã foi duplamente angustiante para os japoneses católicos. O seu livro atesta a fé? Pelo menos, coloca questões exigentes sob a forma de um diálogo com um Deus silencioso. Mas essa luta tem longo pedigree entre os cristãos, e, na verdade, está profundamente enraizada na tradição judaica.

Como acha que este filme vai ser recebido no Japão e em Portugal? De formas opostas?

Estou certo de que o filme será bem acolhido no Japão e em Portugal. É um belo filme, feito com grande mestria, e que coloca questões teológicas importantes. Além disso, ambos os países possuem audiências cinéfilas que estão habituadas às nuances e que não têm medo de ser desafiadas. O mesmo não pode ser dito dos meus compatriotas americanos, fazendo deles a grande incógnita entre os espectadores deste filme. Pelo menos os portugueses e os japoneses aprenderam na escola que os seus países se encontraram no século XVI e que houve missionários envolvidos. A maioria dos americanos não está a par desta história e assim não possui enquadramento para os acontecimentos que o filme mostra.

Tem tido alguma reação de historiadores portugueses?

Ainda não. Como o filme ainda não se estreou e não tenho podido falar muito dele, ainda não houve grande debate. Espero que apreciem que tentei contribuir para fazer um filme tão preciso quanto possível, mesmo que discretamente nos bastidores.


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