Mais uma colaboração de Joel Neto, escritor açoriano que, esta noite, em Divinópolis, será homenageado pela Confraria Cultural Brasil - Portugal no seu 82º. Sarau, apresentação a cargo da presidente Drª. Maria de Fátima Batista Quadros.
REGRESSO A CASA
Um
diário açoriano
de
JOEL NETO
Fiquei
para Deus Nosso Senhor me Levar
Terra Chã, 8 de Dezembro
Chegam a Isabel e a Laurinha e logo a
pequena se funde em abraços – primeiro com a Jasmim, depois com o Melville,
finalmente com os dois. Olho para aquele quadro de alegria que nos entra porta
dentro, anunciando um fim-de-semana de aconchego, e suspiro interiormente: “Que
felizes estão os meus cães. Quem sabe eles não precisavam de uma criança?”
Quase me censuro pela inversão de
factores. Na minha idade, aqueles que não têm filhos a acabar o liceu podiam
bem estar a colocar-se a questão oposta: “Que felizes estão as minhas crianças
com este cão que as visita. Quem sabe não precisavam de um cão?” Mas logo
escolho viajar no tempo: “Porque é que eu despertei tão tarde para os animais?
Porque não me encantaram os cães antes? Porque é que, quando eu tinha a idade
da Laurinha, não tratei do Fidalgo como deve ser?”
Lembro-me muito do Fidalgo, hoje em
dia. Era preto, de uma fisionomia harmoniosa, uma combinação genética talvez
não muito diferente da do Melville, embora menos musculosa e enérgica.
Seguia-nos para todo o lado, a mim, à minha irmã, aos meus primos. Nunca um de
nós lhe deu um mimo – um rebuçado, um banho saudável, uma festa – e, quando
morreu, adoecendo e partindo mata acima, para que não o víssemos perder a
dignidade, nenhum se deteve a pensar nele.
No outro dia, perguntei ao meu pai,
numa nostalgia:
– Ó pai, e o Fidalgo?
E o meu pai:
– Qual deles?
Quase todos os seus cães, desde há uma
eternidade, se chamaram Fidalgo. Fidalgo, para ele, nunca foi bem um nome: é um
posto. Houve Fidalgos grandes e pequenos, esguios e felpudos. Até este maior
que ele lá tem agora se chama Fidalgo.
– Como assim, “qual deles”?! –
indigno-me. – O preto. O do vizinho do continente.
Ele tem de puxar pela cabeça.
– Ah. Morreu com a esgana.
Nem o meu pai o distingue bem, ao
verdadeiro Fidalgo, e foi sempre ele a ocupar-se dos cães. Provavelmente, se o
perguntasse à minha irmã ou aos meus primos, era a mesma coisa:
– “O Fidalgo”, qual? Aquele pastor
alemão?
Ninguém ligou ao Fidalgo como ele
merecia. E, porém, fez tudo para ser o grande cão da nossa infância. Chegou num
dia de sol, já adulto, depositado pelo Sr. Manuel, um feirante de Torres Novas
a quem chamávamos “vizinho do Continente”. Aceitámo-lo mais por inércia do que
por desejo, creio. Mas apenas porque não sabíamos da sua nobreza.
Viveu mais uns dez anos, e durante todo
esse tempo esforçou-se por ser competente. Esteve preso, solto, preso de novo.
Comportou-se sempre da mesma maneira. Distinguia as intenções de uma visita
pela expressão facial e defendia-se como um elefante acossado sempre que o lobo
da Alsácia do José Elmiro – Tarzan? Seria Tarzan? – atravessava a estrada e se
vinha aproveitar do facto de ele estar preso. Então, o meu pai tratava-o com
terramicina, falando-lhe naquela língua murmurada que só os dois entendiam, e
soltava-o uns dias, para curar as feridas.
Era nesses dias que o Fidalgo nos
seguia como uma sombra. Subia a encosta connosco, para nos ver trepar às
árvores, e descia à Canada do Rolo, anos depois, quando começámos a
aventurar-nos de bicicleta para lugares mais distantes de casa. Nunca exigiu um
afago. Nunca lho demos. Só hoje percebo que nos escoltava, da mesma maneira que
o fazia quando estava preso: não era à casa que protegia do Tarzan, muito menos
a si próprio – era a nós.
Sim, eu tive um cão bom e não me
lembrava. Chamava-se Fidalgo e era um rafeiro caladão, pulguento por culpa
nossa e honroso por feitio próprio. Recordo-o quase todos os dias, agora,
quando saímos de casa os dois, eu e a Catarina, a Jasmim caminhando serena ao
lado dela, o Melville aos saltos ao meu. Recordo-o quando passamos pela Nela,
trazendo o seu husky siberiano, como o recordo ao cruzar-me com cada um dos
cães com que nos cruzamos.
Os do vizinho Rebelo, os do Rui
Patrício e aquele castanho mauzão do José Francisco. A matilha da casa
cor-de-rosa e o júnior do Carlos Barraca. O pequenino do Fernando Adriano e
todos os outros por aí fora: o amarelo da Emilinha, às voltas sobre si mesmo,
os dois cães-de-fila raivosos da casa à entrada da Canada da Francesa, o Gastão
da urbanização dos Pereiras, o labrador do Rómulo, o dálmata que quase sai
pelas frinchas do portão, os leões da Rodésia da rapariga ao lado do Fraga, o
cocker minúsculo que aproveita a fúria da cadela grande com que vive para
tentar copulá-la à falsa fé.
Em todos eles vejo o Fidalgo. O que ele
foi, não foi ou podia ter sido.
Sim, eu tive um cão bom logo na minha
infância, e julgo que parte da atenção que hoje dispenso aos bichos, inclusive
os dos outros, é um modo de expiar a culpa por não ter o tratado como deve ser.
Sempre é um consolo, carregar essa culpa. Mas o que eu gostava mesmo era de, na
idade da Laurinha, ter tido esta alegria com que ela abraça a Jasmim e o
Melville, ao chegar de São Jorge.
Mais uma colaboração de Joel Neto, escritor açoriano que, esta noite, em Divinópolis, será homenageado pela Confraria Cultural Brasil - Portugal no seu 82º. Sarau, apresentação a cargo da presidente Drª. Maria de Fátima Batista Quadros.
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