Joel Neto esteve, na passada semana, em Porto Alegre, na tão famosa feira do livro a céu aberto, a maior da América do Sul. E lá encontrou o Mário Zambujal, grande figura, que sempre irradia uma boa disposição. Coloca todos a rir.
REGRESSO A CASA
Um
diário açoriano
de
JOEL NETO
Tambémnão é diferença de palmo
Domingo, 6 de Novembro
Às vezes descreve-se o mundo dos
escritores como um mundo cão, cheio de invejas e maquinações. O único outro
pequeno mundo que conheci foi o dos jornais, e não me parece que o dos livros
seja mais rico nelas.
Este fim-de-semana andaram por cá uma
série de nomes incontornáveis: Rita Ferro e João de Melo, Fernando Alves (que
não se reconhece como escritor, mas essa é outra história) e Nuno Camarneiro.
Viram o essencial da ilha, mas já a conheciam. Sobretudo, sentaram-se, provaram
as nossas iguarias, trocaram afectos e ofereceram aos leitores uma das mais
belas mesas redondas da história do Outono Vivo.
Agora fala o Mário Zambujal, chegado
apenas ontem, e nós sentamo-nos na plateia. Como ele próprio diz, vem de fazer
uma coisa que nunca tinha feito: oitenta anos. Põe a sala a rir várias vezes,
mas essa não é a questão. Tudo nele, além do rasgo criativo, é optimismo. É o
lado mais luminoso e são da vida que procura. E ouvi-lo é como beber do cálice
da esperança.
É tão bonito, encontrar um velho
optimista. Num velho, a esperança também tem de significar esperança no outro.
Aquele é o velho de oitenta anos que eu gostava de ser, se pudesse chegar aos
oitenta anos. Felizmente, a esperança dá-se mais ao cultivo do que o rasgo.
Terça-feira, 8 de Novembro
A Catarina foi distinguida nos prémios
da Associação Portuguesa de Tradutores pela sua versão do Hardy. Celebrei-o
como um menino após um golo do Benfica. Vi como ela traduziu aquele livro
colossal e sei o que significa este reconhecimento.
Que, para ela, é apenas o alívio de
saber-se dedicada a uma actividade adequada. É totalmente desprovida de
vaidade, a Catarina. Não faz marketing pessoal, desconhece o networking,
não tem sequer um Facebook. O direito a traduzir o livro seguinte é tudo quanto
a inquieta.
Felizmente, o obscuro, solitário,
perseverante, qualificadíssimo e desastrosamente pago trabalho do tradutor
também tem prémios anuais. Nem que seja por uma vez no calendário: ninguém mata
o mensageiro nem faz confusão entre traduzir literatura e falar línguas com a
desenvoltura de um cantor rap.
De resto, nunca me esqueço de que foi
ela, a Catarina, quem tomou a decisão final sobre a nossa mudança para aqui.
Transformou tudo para nós. Para ambos – até profissionalmente, como se vê.
Não é só desprovida de vaidade, a Catarina:
é infinitamente mais inteligente do que eu. Juntos, os meus defeitos e as
virtudes dela fariam uma pessoa indomável. Todos devíamos casar com mulheres
mais inteligentes do que nós.
Quinta-feira, 10 de Novembro
Quase não chegou a haver castanhas na
Terra Chã, mas nos Biscoitos foram abundantes. Os araçaleiros estão carregados
em toda a ilha. E nós passeamo-nos por ela, eu e o Fernando, na recta final do
trabalho extra que ele ficou a fazer.
Durante uma semana, percorremos o
asfalto e a bagacina. Olhámos a terra e o mar. Descobrimos a espetada de fillet
mignon do Caneta, reparámos como na venda do Américo continua a ver-se os
documentários do Odisseia, em vez dos canais da faca-na-liga, e detivemo-nos a
contemplar os mantos de erva-do-capitão – a que também se dá o nome de tapete
inglês, ou confeitos, como diz a minha mãe – que progrediam pelos cerrados no
seu cor-de-rosa exultante, como se todos os anos estivessem mais perto de
engolir a terra.
Não deixámos de falar com as pessoas.
Entrevistámos velhos e novos, urbanos e rurais, artistas, burocratas,
intelectuais, analfabetos. E em todos eles o Fernando encontrou a mesma
amabilidade e a mesma profundidade que eu venho encontrando desde que cheguei,
e com cuja evidência ainda não perdi a capacidade de maravilhar-me.
Agora percorremos aquela a que eu e a
Catarina demos o nome de Estrada do Paraíso. Atrás de nós ficou o trilho da
Rocha do Chambre, com os musgos e líquenes que atestam da saúde deste
ecossistema. E, à medida que descemos por entre os pastos na direcção dos
Biscoitos, vai-se apoderando de nós a certeza de que pararemos a comer umas
lapas no Bar do Abismo.
Ele conta-me de como descobriu que,
numa farmácia da ilha, ainda se vendem mezinhas de bruxo lado a lado com os
medicamentos mais sofisticados. Eu tenho pena de que ele não coma aves, porque
gostava de dar-lhe a provar as nossas empadas, a que nunca falta uma pitada de
açúcar.
As empadas desta ilha misturam o doce e
o salgado, como as farmácias misturam a ciência e a crendice, as festas o
sagrado e o profano e o povo a simplicidade e a espessura. Nesta ilha, até os
mais terríveis infestantes, como o tapete inglês, podem ser encantadores.
É fácil de mais ser escritor num lugar
assim, e já não há nada que eu possa fazer para impedir que o Fernando o
perceba.
📑 ÍNDICE DE ARTIGOS DOS AUTORES DO PORTAL
📑 ÍNDICE DAS PUBLICAÇÕES POR TEMAS
Comentários
Enviar um comentário