Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

Joel Neto procura sempre, e quando possível, estar presente em feiras do livro. Desta feita, deslocou-se a Porto Alegre para participar na maior feira do livro da América do Sul em céu aberto. E lá reencontrou velhos amigos e companheiros, entre eles Alcides Gonçalves, brasileiro que passou pelo jornal Record no tempo do Joel Neto.

REGRESSO A CASA
Um diário açoriano
de JOEL NETO

Também não é assim disparates

Quinta-feira, 17 de Novembro
O voo 118 da TAP ergue-se sobre Porto Alegre e, ao virar a estibordo, oferece-me pela janela a silhueta do Beira-Rio, inundado de luz e desespero. Lá em baixo, o povo colorado vai fazendo contas à terrível possibilidade de o Inter cair na Segundona.
Sentado nas bancadas está o Alcides, desesperado também. Falámos muito do Internacional, esta semana, porque também entre nós o futebol chegou a ser um propiciador de conversa. Mas fizemo-lo em busca dos velhos espaços de conforto. Há muito que não precisamos dele.
Conhecemo-nos em 1995, num jornal a viver os últimos dias. Eu era um rapaz dos Açores, com a faculdade em curso e o desejo de se fazer à vida, e ele um brasileiro grandão, de argola na orelha, que tinha viajado pelo Sudeste Asiático, trabalhado no Ronnie Scott’s e percorrido a Europa à boleia, a ver a fórmula um.
Tinha tudo para dar errado, tal amizade, mas era demasiada formação para eu desperdiçar. Habituei-me a falar com ele e, quando após uns meses pude mudar para um jornal melhor, não descansei enquanto não o levei.
Fomos amigos durante muitos anos. Somos amigos há muitos anos. É o meu amigo homem, o maior de todos, apesar da distância e dos outros (tão bons) que tenho, e faz-me falta desde que, num espaço de meses, ele voltou ao Brasil e eu aos Açores.
Já escrevi sobre isso.
Agora, encontrámo-nos na cidade dele. Eu vim por causa da Feira do Livro, da herança açoriana e de uma série de afectos que acumulei aqui. Mas, bem vistas as coisas, vim por causa dele – da possibilidade de conhecer a sua Porto Alegre, da ideia de me sentar à sua frente a repetir as conversas do passado, sobre o Inter e a fórmula um e o cinema e as namoradas.
Durante cinco dias, percorremos quase tudo. Olhámos monumentos. Demos a volta à Redenção, em cujo bric ele compra gibis. Atravessámos o Bonfim.
Depois fomos ao bairro da infância dele. Da mãe dele. Esvoaçavam sabiás e bem-te-vis, os fios eléctricos emaranhando-se nas goiabeiras sob os jacarandás, e quando nos viemos embora, depois de ele me mostrar a quadra onde jogava à bola e o dormitório feminino onde ia espreitar peitinhos, a Celina, irmã dele, caminhou connosco até ao lotação, fazendo-nos prometer voltar.
Não chegámos a corresponder. Mas nem por isso o Alcides deixou de me acompanhar às sessões da Feira, e de me ensinar a controlar os movimentos da malandragem, e de se sentar comigo em botecos, e de me conduzir duas vezes ao topo do Mário Quintana, em busca do pôr-do-sol do Guaíba que não se chegou a abrir para mim.
Nunca o vi tão falador, nem alguma outra vez a diligência foi tão mais dele do que minha.
Ontem à noite, levou-me ao Barranco, para a despedida – exactamente como, no primeiro dia, fora ao aeroporto esperar-me: de surpresa. Prolongou a conversa o quanto pôde e chegou a confessar ter saudades minhas (“saudades do amigo”, disse, o que para ele é ir longíssimo). Perguntei:
– Nunca te arrependeste?
E ele, que mudou imenso de léxico, estranhou à europeia:
– Como assim?
Eu não me referia apenas à ausência da mãe. Referia-me à violência.
Há onze anos, quando aqui viera sem ele, Porto Alegre era quase pacata. Podia andar-se na rua sem olhar por cima do ombro. Agora, todos os dias os jornais trazem notícia dos homicídios mais chocantes. A classe média já só deixa as grades dos condomínios para ir trabalhar. As disputas entre gangues causam danos colaterais, miúdos de rua matam tanto por um carro como por um telemóvel ou coisa nenhuma.
Dizia há dias uma revista que POA é hoje uma das dez cidades mais violentas do mundo. Desde que aqui cheguei, sou avisado a toda a hora – no hotel, na Feira, nos táxis. Até ele, Alcides, me avisava: “Fica ligado!”, o que me fez lembrar o privilégio que é viver no paraíso onde vivo.
Nunca lhe ocorrera, ao menos, tornar a partir, agora que nem a velha mãe vivia já?
Ele abriu as mãos:
– Mas, véio, essa é a minha casa...
Fiquei ali, a olhar para ele. Depois saí a fumar. E depois voltei a sentar-me à sua frente, lamentando o Inter. E depois ainda deixei que ele me levasse ao hotel, para lá e para cá, como um noivo zeloso.
Lembrei-me de todos os sítios perigosos onde estive no passado, e de como tão poucas vezes hesitei. Disse a mim próprio que talvez fosse da idade, este súbito medo. Ou então uma cobardia momentânea.
Mas só agora, que atravesso o Atlântico e me aconchego a esta manta vermelha e penso em como, dentro de horas, estarei com a Catarina, os dois à lareira da Terra Chã, a Jasmim a ressonar numa cama e o Melville a olhar-nos da outra, sinto vergonha por não ter percebido logo.
Não é idade nem cobardia, não, isto que agora tenho: é um gosto de viver que nunca dantes tivera. E a questão é que não sou só eu: é o Alcides também.

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* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”

                                                                  

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