Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

Hoje mais uma colaboração do escritor nosso amigo Joel Neto que, no próximo dia 14 de dezembro, pelas 19H30, em Divinópolis, Minas Gerais, será homenageado pela nossa Confraria Cultural  Brasil - Portugal, com a apresentação da presidente Drª. Maria de Fátima Batista Quadros que dará a conhecer aos presentes no 82º. Sarau todo o curriculum do homenageado. Um vasto e precioso curriculum.

REGRESSO A CASA
Um diário açoriano
de JOEL NETO


Arremedeia-te com’a puderes

Terra Chã, 21 de Novembro

É uma mulher bonita, sim. Fotografada de certos ângulos a partir dos quais se faz fotografar – ou se fotografa –, faz lembrar aquela que imaginamos ter sido Pocahontas, embora mais por influência dos estúdios Disney (e talvez de Terrence Malick) do que pelas gravuras da época.
Mas não é da mulher que falo: é do rasgão que constitui na paisagem. Ela e não só. Os seus enormes bovinos negros, caminhando entre pastos como búfalos através da pradaria. O verde daqueles cerrados, como se até a mais indolente natureza se esforçasse por prestar-lhe uma vénia. Os tractores e carrinhas dela, as grades das jaulas em que transporta os animais para as feiras, até os brincos que prende aos focinhos dos bois – tudo cor-de-rosa.
Cor-de-rosa mesmo: um sulco rosa-choque cruzando a extensão de erva e de basalto, como num filme de Almodôvar. O que – dizem-me – já se tornou uma estratégia de marketing, e aliás bem-sucedida: os aberdeen-angus da sua exploração tornaram-se especialmente cobiçados tanto por produtores como por comerciantes, à medida da excepcionalidade da rapariga. Mas que continua, em primeiro lugar, uma atitude estética.
Garantem-me que também é professora, a Lady Angus. Não sei: contou-mo outro coleccionador de personagens com a tendência para a efabulação de qualquer contador de histórias. Sei que se auto-intitula assim, “Lady Angus”, e que a página oficial da sua lavoura no Facebook tem mais seguidores do que as de alguns actores de telenovelas.
É lá que a vejo sempre, na Internet. Vejo-a reconstruir muros – “tapar paredes”, como aqui se diz – à mão. Vejo-a tosquiar animais para apresentar em concursos. Vejo-a abraçar uma bezerra como se abraça um cão – vejo-a ensinar uma porção de estagiários e vejo também que uma das estagiárias vem todos os dias de camisola ou calções cor-de-rosa.
Lady Angus, seja qual for o seu verdadeiro nome, trouxe à criação de gado na ilha um romantismo que nem unindo forças todos nós, os que escrevem e escreveram sobre o campo, conseguiríamos igualar. “Cows make me happy”, escreve num dos seus posts – em inglês, porque a sua mensagem é para o mundo.
Percorre-se essa página em que constrói a narrativa e chega a haver algo de sonho americano na ideia de mergulhar as galochas – perdão, as “botas de cano” – no estrume, mesmo sendo elas mais curtas do que a profundidade dele. Não falo por mim, sequer: ouvi dilemas de vocação até aos mais empedernidos citadinos de Angra, e nem todos eram malandrice.
No outro dia, pareceu-me detectar a carrinha cor-de-rosa pelo canto do olho, ali em cima no Posto Santo. Olhei de imediato na direcção contrária, a conferir o estado do tempo. Se fosse preciso tinha até encostado, cerrando com força as pálpebras – só para que ela pudesse continuar aqui, confinada ao ecrã do meu computador.
Lady Angus é cinema. Encontrá-la ao vivo, cruzar os olhos com aquelas alfaias cor-de-rosa ou mesmo apenas com um dos seus grandes bois negros seria como detectar os fios que suspendem Peter Pan ou descobrir que o puré de batata da nossa infância, afinal, era de pacote.
Apenas me preocupa a recorrência com que o Diogo, neto do sr. Dimas e filho da Sónia, o mesmo malandrim que há dias me veio podar o castanheiro, aparece nas fotos de Lady Angus, estagiário e pajem solícito. À cautela, vou evitar falar-lhe nisso: ainda me diz que a rapariga é mesmo bonita, não é só das fotos, e lá se vai o delicado equilíbrio em que assento esta férrea determinação de desviar os olhos do tractor pintado de cor-de-rosa.

Terra Chã, 23 de Novembro

Volto a ter a mesa arrumada, depois de meses a fazer e a desfazer malas. Ainda não pus o correio em dia e os cães andam atrás de mim para todo o lado, com medo de que parta de novo. Mas tenho o computador montado, com os fios desenrolados na estrita medida das necessidades, e os dicionários voltaram a abrir-se sobre os velhos suportes de livros de receitas.
Suspiro pelas longas noites de Inverno, pelos dias repetitivos e chatos, pelo silêncio. Ergo os olhos para os próximos meses e apetecia-me que fossem todos iguais – todos iguais uns aos outros, sempre iguais, com este vento que sopra lá fora e estes cães que se me aninham aos pés e este computador ligado sob a luz branda do candeeiro Ikea.
Até o Natal, neste momento, me parece um estremeção.
O tédio tem sido a origem dos maiores males e também dos lapsos mais promissores. É do tédio que nasce a criação, tantas vezes, e eu suspiro por ele como suspiro por ela: pela oportunidade de sentar-me à espera dela, de tudo o que ela tem de trabalho e de milagre.
Vai ser um bom Inverno. Este vento nunca me enganou.


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* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”
                                                                   


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