Do escritor Joel Neto

DO TEXTO:

Já na sua e nossa ilha Terceira, Açores, Portugal, o escritor Joel Neto, nosso apreciado colaborador, fala hoje sobre amigos de longa data - e não só estes - que reencontrou na sua memorável deslocação aos Estados Unidos onde apresentou os seus dois mais recentes livro, Arquipélago e A Vida no Campo. Um grande sucesso com a venda de 350 exemplares em tão poucos dias.
Acresce que, para o efeito, Joel Neto contou a excelente colaboração de Henrique Jorge Sousa Rodrigues, que o acompanhou e foi o mentor desta deslocação de Joel Neto. Em março de 2017 a Califórnia e lá estarão os dois de novo.

REGRESSO A CASA
Um diário açoriano
de JOEL NETO

Perdidos à rua!

Quarta-feira, 19 de Outubro
E é naquele momento, com a colher erguida à altura do queixo, o cheiro das amêijoas e da cebola e das natas espalhando-se em volta, que me ocorre:
– Vinte anos passados e ainda não me esqueci deste sabor. Não me esqueci deste sabor e podia viver aqui.
Estou sentado no Faculty Club da Universidade de Brown, entre cadeiras almofadadas, madeiras antigas e reposteiros floridos, e de repente sinto-me em casa. Como se ainda fosse a tempo de começar de novo. Como se ainda fosse possível optar por outra vida – uma carreira na universidade, cursos de literatura e escrita criativa, uma paixão serôdia por uma colega chegada do Midwest, com cabelos caju, para ensinar no departamento de Arte.
Talvez estivesse a pensar em Julia Roberts naquele filme da Mona Lisa. Ou em Juliette Binoche, com as suas canadianas.
A verdade é que ando pela Nova Inglaterra há uma semana e ainda não me conseguira sentar a saborear uma clam chowder. Já tinha comido três variedades de bacalhau, um polvo à lagareiro, iscas de fígado tão boas como raramente provei em Portugal. Já tinha ouvido fado e desgarradas, já tinha visto folclore da Terceira e bandeiras dos Açores drapejando sobre os territórios de Herman Melville – já tinha experimentado todos os mais exultantes tipos de generosidade patriótica e amiga, do Victor e do Henrique, do Ávila e do Carlos, do Frank e de todos os outros com que me cruzei ou me receberam.
Já me tinha apercebido de como tantas tradições etnográficas lusitanas – e açorianas em especial – se mantêm mais vivas nas comunidades emigrantes do que nos locais de onde vieram. E de como, se as dissermos apenas mais uma ou duas vezes ao dia, as palavras “Espírito Santo” são bem capazes de vir a resultar num bordão de linguagem tão útil como os nativos like ou you know.
Mas ainda não tinha tido a oportunidade de me sentar a comer uma clam showder, a mais gulosa sopa que alguma vez provara e que nunca mais me permitira comer – nem noutros lugares da América nem do mundo (Lisboa incluída), porque simplesmente não se tratava da Nova Inglaterra.
Experimentei-a pela primeira vez em 1996, como o Nuno. Nunca tinha atravessado o Atlântico e, quando nos sentámos à mesa, li a ementa e pedia-a de imediato. Hoje, voltei a comê-la – e, afinal, ainda lá estava: cada cheiro, cada sabor, cada lugar para onde ela me originalmente transportara.
– Sim, eu podia viver aqui – insisti.
Porque me faço sempre essa pergunta e, com os anos, dou cada vez menos essa resposta.
Daqui a dois dias estarei de volta ao campus, para uma conferência que hei-de envaidecer-me anos de ter dado. Mas o Onésimo quis receber-me na mesma, mostrar-me os halls e as bibliotecas, os estudantes de calções deitados pela relva a ler Petrarca – no essencial, como funciona uma das universidades mais exclusivas do mundo e como esta se esforçou para conservar-se pequena (relativamente pequena), de modo a que, se um dia parar de produzir prémios Nobel, não deixe ao menos de produzir adultos de corpo inteiro.
E, então, sentamo-nos no Faculty Club, para almoçar, e tudo faz sentido por um breve e inesquecível momento. Através das janelas, dispersam-se carvalhos, hamamélias e áceres, colorindo-se em direcção ao Outono pleno. Reina uma espécie precoce de verão indiano, e agora nem tudo se mede em dinheiro, nem este é um país sem História, nem tão-pouco toda a gente nele é obesa e, em cruzando-se connosco, ou está a caminho de um McDonald’s ou a voltar dele.
Apetece-me ficar. Por esse breve e inesquecível momento, apetece-me ficar e começar de novo – uma bolsa de estudo, um masters, planos para um doutoramento, quem sabe até uma vaga no corpo docente, por reforma de algum velho professor irlandês cujo discurso tivesse começado a deixar de fazer sentido.
Sorrio, registo a felicidade da ocasião e, dali a pouco, telefono à Catarina. Fumo um cigarro sob uma bétula, esquilos saltitando entre a vegetação rasteira, não menos colorida, e, no pórtico da casa de madeira em frente, uma decoração esperando o Halloween. Digo-lhe como tenho saudades dela, e dos nossos cães, e da nossa rotina no campo e na ilha – dos passeios matinais às longas horas de trabalho em silêncio e às brandas noites à lareira. E cada palavra que digo é verdade, e nem quero verdadeiramente viver no Rhode Island, nem sequer apaixonar-me por Julia Roberts.
Mas não deixo de celebrar o facto de ainda me perguntar: “E se?” De ainda imaginar outras vidas e, aqui e ali, conseguir deixar-me fascinar por uma delas ao ponto de, por um momento, me sentir capaz de seguir o seu trilho.
Aí permanece a centelha da criação. Nessa pergunta: “E se?” Não sei de melhor razão para continuar vivendo. Nem de mais perfeito motivo para não mudar.

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* alguns destes textos são originalmente publicados no “Diário de Notícias”





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