Eu canto samba – Paulinho da Viola

DO TEXTO:
Paulinho da Viola em sua casa
Claudio Leal

Paulinho da Viola comemora 50 anos de carreira em grande estilo. Desfila pela Portela no Carnaval, sai em turnê pelo Brasil, lança caixa de discos e site novo e faz uma confissão: “Sempre me vi como um violonista que cantava algumas músicas de si mesmo e dos outros. Eu canto, mas não me vejo como cantor”

O verão chegou apressado ao quintal de Paulinho da Viola. Desde novembro do ano passado, descreve o compositor, o sol vem por cima da floresta, esquenta a sua casa, impõe um calor danado e inclina-se para o mar do Rio de Janeiro. “Nas tardes lindas, venho aqui e fico olhando a Pedra [da Gávea]”, conta Paulinho, fugitivo da quentura da sala, enquanto almoça um peixe. O dia compensa: abafado, mas azul.

O compositor nunca deixou de contemplar a noite no bairro do Itanhangá, onde mora. “Gosto de ficar sozinho. Ainda mais num lugar como este”, diz. “Quando tem noite de lua, ouço os barulhos. Sou assim desde menino, quero um canto para ficar ali, pensando.” Notívago profissional, aproveitava as madrugadas para gravar discos e dirigir até Copacabana pelas ruas desertas da cidade – às vezes, perseguido por melodias nascidas nas travessias de túneis. Aos 72 anos, ele deixa esse quintal de insônia e contemplação para celebrar cinco décadas de carreira numa turnê nacional iniciada no Rio. “Fazer shows, sem paradinhas, não é muito a dele. Mas agora se animou”, garante a mulher e empresária, Lila Rabello. “Começo, mas não sei quando termino. Não fiquem atrás de mim”, ele advertiu à filha Cecília. 

Dentro das comemorações, um site sobre sua obra (www.cantodesala.com.br) e uma caixa com 11 discos lançados entre 1968 e 1979, além de mais um dedicado a gravações raras, em fase de pós-produção na Universal Music.

No Carnaval deste ano, Paulinho desfila novamente pela Portela, preservando a cadência de quem não se adaptou à velocidade dos atuais desfiles, estranhos demais ao autor do samba-enredo “Memórias de um sargento de milícias”, vitorioso em 1966. “Estou um pouco afastado de escola de samba. Hoje é a necessidade de correr. Depois do Carnaval você já começa a pensar no próximo, não pode perder tempo”, afirma o portelense, que se aproximou da agremiação no final de 1964 e logo foi incorporado à ala dos compositores. “Você sente que as coisas mudam. A vida tem que mudar, tem uma dinâmica. Mas nem sempre as coisas mudam pra melhor.” A Portela vem com o enredo “Imagina Rio, 450 janeiros de uma cidade surreal”, e dentro dele faz uma homenagem a Paulinho, destaque do último carro, Trem do Samba, ao lado das cantoras Maria Rita e Roberta Sá, bem como do presidente de honra da azul e branco, Monarco. Há mais Carnaval: em Madureira, Paulinho dará “uma força” ao bloco de rua Timoneiros da Viola, cujo repertório reverencia seus sambas e os do mangueirense Cartola, o homenageado de 2015.

Na levada da conversa, as memórias momescas do compositor alcançam o dia em que descobriu o passado carnavalesco da mãe, Paulina. Certa vez, ela o convidou a visitar uma colega de enfermagem, no hospital do Engenho de Dentro. “É isso aí a minha vida… Chega um tempo…”, lamentou a senhora, de súbito voltando-se para a comadre: “Mas nós brincamos muitos Carnavais!”.

O músico encerra esse relato com um sorriso de saudade. Na sala, os móveis de madeira formam um arquivo improvisado de discos e livros. Nem o piano se livra das pequenas pilhas de CDs. “Papéis sem conta/ Sobre a minha mesa”: o samba “Nada de novo” será lembrado por quem encontre a desordem bem ordenada da escrivaninha cheia de gavetas.

Num canto, o pequeno quadro de cena musical do pintor e compositor Heitor dos Prazeres. Um cômodo guarda a coleção de vinis; outro, a mesa de sinuca. Em reforma, a casa apresenta as escolhas intelectuais de Paulinho, a começar pelos livros dos poetas Jorge de Lima, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade… E, talvez para não passar aperto na oficina de marcenaria, logo ali em frente, uma Enciclopédia do trabalho em madeira. As fotografias de seus feitos como marceneiro estimulam o recebimento de cartões na ponte aérea Rio-SP. “Também sou do ramo”, dizia um bilhete.

Os desfechos alegres de suas histórias amaciam os cabelos brancos. Erudito desengravatado, ainda mais lépido entre goles de cerveja, Paulinho é dos que conversam sem olhadelas para o relógio. De cor, sabe que o número 21 da Revista brasileira de folclore aborda o jongo, a dança de origem africana coberta de segredos. Com saberes afro-baianos, pode comentar a sucessão de mães de santo no candomblé.

A prosa fluente esconde que o garoto criado em Botafogo chegou, como o próprio artista conta, “tímido e inseguro” à vida adulta. “Foi uma luta muito dura para poder superar isso. Por formação, por educação. A gente veio de uma família humilde, que não ambicionava nada. Todo mundo queria ser honesto, trabalhar e estudar”, resume Paulinho. Segundo ele, o irmão, Francisco, “é aquela pessoa doce, que fala como se estivesse pedindo desculpas para falar”.

Nascido em 12 de novembro de 1942, Paulo César Baptista de Faria assistiu desde rapagote às rodas de choro do pai, César Faria, violonista do conjunto Época de Ouro. Calado, absorvia as manhas de Jacob do Bandolim, em cuja casa avistou Hermínio Bello de Carvalho. Reencontrou-o dali a cinco anos, como cliente da agência do Banco Nacional em que trabalhava. Em 1964, Hermínio extraviou o bancário para o restaurante Zicartola (de Zica e Cartola), onde a vocação musical passaria por lapidações nas noites de samba com Nelson Cavaquinho, Zé Keti, Elton Medeiros e Nelson Sargento. Formou-se em contabilidade, mas esse ofício durou cerca de três anos em sua vida.

Certo dia, Cartola o chamou de lado e, por justiça, entregou-lhe o primeiro cachê: “Você vem todo dia, fica tocando. Toma isso aqui pelo menos pra sua passagem”. Em 1965, também puxado por Hermínio, embarcou no musical Rosa de ouro, no qual despontaria a cantora Clementina de Jesus.

Lançado em 1969, o samba “Foi um rio que passou em minha vida” conquistou as rádios e o Carnaval de 70, reafirmando sua confiança na viola: “Bom, é a minha profissão mesmo, vou cuidar disso”. Em “Foi um rio”, ele exaltava a Portela com poesia bastante para dissipar o mal-estar causado pelo sucesso de “Sei lá, Mangueira”, uma ode à adversária composta por Paulinho e Hermínio.

Na ponta da mesa, noite caída, Paulinho acompanha o jantar da família. Sem fome, retoma a história: “Se eu não encontrasse Hermínio, não sei, provavelmente largaria a música para fazer outra coisa”. Lila concorda: “É verdade, há encontros decisivos”.

“Bonito…”, sorri Hermínio, 79, ao saber da frase do amigo. Numa poltrona de seu apartamento em Botafogo, o primeiro parceiro de Paulinho entrefecha os olhos e canta a “Valsa da solidão”, de autoria dos dois: “Onde estava tanta estrela que eu não via/Onde estavam os meus olhos que não te encontravam…”.

“Além da integridade, Paulinho provou ter amor por sua escola, respeito pela obra alheia e nenhum pedantismo. O trabalho com a Velha Guarda da Portela é um dos momentos mais sublimes da música brasileira. Obrigou outras escolas a tomar vergonha na cara e fazer algo parecido”, reconhece o poeta Hermínio. Produtor do disco Portela, passado de glória, de 1970, Paulinho conta que o idealizou “por amor, por paixão, por respeito”.

Em sua obra, o samba se abriu para as experimentações de “Sinal fechado”, “Comprimido” e “Roendo as unhas” – “sem essa de tradição, raiz e autêntico”, sustenta o artista. “Eu não tinha essas coisas. Queria experimentar, mas algo que me agradasse. Primeiro, com um respeito natural a uma história em que estava envolvido. Como é que eu podia negar Pixinguinha, Jacob [do Bandolim], meu pai, todo esse povo? Não podia. Isso foi a minha vida durante muito tempo e estava ali com uma certa vida em mim. Quando fiz, procurei ser o mais espontâneo e o mais verdadeiro que eu podia, com uma lealdade a minha história. Não era um conflito.”

O compositor renovou o samba “a partir de uma sintonia fina com o choro”, avalia o crítico musical Tárik de Souza. “Paulinho da Viola tem uma posição singular na geração surgida nos anos 60, sob impulso dos festivais. É essencialmente um sambista, algo raro entre seus pares universitários. Na sua formação também inclui-se o choro, por influência do pai. Ao mesmo tempo, ele transitou pelas inovações conceituais que surgiam na época, propulsionadas pelo Tropicalismo. Foi parceiro de um dos integrantes do movimento, José Carlos Capinan [‘Vinhos finos, cristais’], assim como, adiante, se aliaria a Arrigo Barnabé, da vanguarda paulista, em ‘Crotalus terrificus’”, analisa Tárik.

Esse caminho foi pontuado por gestos de solidão, sim, e de teimosia. “Nunca nenhum produtor, ninguém ligado às gravadoras, chegou pra dizer: ‘Vai ser assim’ ou ‘vai ser assado’. Não. Sempre fi z o meu trabalho. Talvez isso tenha seu lado negativo. Mas sempre fi z praticamente sozinho, escolhendo as músicas, compondo ou combinando arranjos com esse e aquele”, narra Paulinho.

Sem gravadora, ele não balança com as cobranças de novos álbuns de inéditas desde Bebadosamba, de 1996. De lá para cá, registrou três discos ao vivo (Sinal aberto é dividido com Toquinho) e neste momento evita cravar uma data para o retorno aos estúdios, embora reconheça a existência de dez novas canções. “Não componho muito, entendeu?”, explica. “Sempre me vi como um violonista que cantava algumas músicas de si mesmo e dos outros. Porque um cantor é um cantor. Eu canto, mas não me vejo como cantor.”


Pai de sete filhos, quatro deles do casamento com Lila, aprofunda a experiência familiar nos palcos. Beatriz, 34, é cantora; João, 32, é violonista; e Cecília, 33, integra a produção da turnê. Paulinho prefere opinar sobre o trabalho dos rebentos somente se houver um pedido de conselho. “Eles sempre tiveram liberdade para escolher o que quisessem, até time de futebol. Meu pai era Fluminense, minha mãe era Flamengo, meu irmão é Botafogo, como é que vou querer impor algo pros meus filhos? Tanto que eu tenho filho flamenguista”, resigna-se o vascaíno.

A democracia do futebol se traduz na camisa rubro-negra do neto Luan, 9, jogador aprendiz e infiltrado flamenguista. Paulinho da Viola, só de onda: “O Vasco agora subiu para a série A, viu? Vai ter que vestir a camisa!”. Luan, em busca da bola, avisa: “Se o Flamengo pegar esse Vasco aí, vai dar nove a zero”. O avô se conforma com o placar e acompanha o visitante até a porta, como quem pede desculpas por fechá-la.

Em Itanhangá, no Rio de Janeiro
Fotos: Bob Wolfenson


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